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A filha de João Goulart reabre a história da morte do pai

Denize Goulart e família conseguiram sensibilizar o governo e a Justiça para investigar a morte suspeita do ex-presidente da República João Goulart, seu pai

Por Patrícia Zaidan Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 11h32 - Publicado em 27 jun 2013, 22h00

“Ele tinha esperança de que a ditadura não se sustentasse por muito tempo e ele pudesse voltar para o Brasil”, conta Denize
Foto: Eduardo Monteiro

O pai estava imóvel no caixão. Denize Goulart não havia se despedido dele. A notícia da morte do ex-presidente João Goulart, aos 57 anos, numa de suas fazendas na Argentina, chegou à filha, que vivia em Londres, pelo telefone. Ela voou com o irmão, João Vicente, para a gaúcha São Borja, onde ocorria o velório. A dor terrível não a imobilizou. Pelo contrário, ela deixou claro que a revolta não era algo particular e que o Brasil não suportava mais a ditadura dos militares. Denize tinha 17 anos, era dezembro de 1976. Jango havia sido covardemente deposto no golpe de 1964 e tentava romper o exílio e voltar à nação dias antes de morrer. Sobre a urna, Denize colocou uma faixa com a palavra “anistia”, escrita em vermelho, e chorou.

Ao longo da vida, viu crescerem os indícios do assassinato do pai pela Operação Condor – aliança que exterminava qualquer ameaça às ditaduras do Cone Sul. Só em março deste ano o governo brasileiro admitiu que Jango pode, sim, ter sido vítima de um crime perfeito. O golpe fatal: uma cápsula de veneno posta entre os comprimidos para o coração que o ex-presidente tomava. Uma das teses é a de que o delegado Sérgio Fleury, do Dops de São Paulo, tenha ordenado a morte com a aquiescência do governo Geisel. Passados 36 anos, cogita-se exumar o corpo para a investigação – uma vitória da família. “O país precisa conhecer a história e corrigir a injustiça feita ao meu pai”, diz Denize, 54 anos, entre fotos que relembram o glamour de Jango e Maria Thereza Goulart, a primeira-dama mais jovem e linda que o país já viu, hoje com 72 anos.

Você sempre acreditou em crime?

Sempre suspeitei. Não se fez autópsia na Argentina nem no Brasil, onde ele foi eleito presidente – e é o único presidente que morreu no exílio. Ficamos impactados. Meu pai estava se cuidando, tinha emagrecido a pedido do cardiologista, fazia check-up na França duas vezes por ano. No atestado de óbito, assinado por um pediatra argentino, consta como motivo de morte: “enfermidade”. Que enfermidade? A versão oficial do governo militar foi o silêncio total. Não sabíamos por onde começar a investigação. Terminada a ditadura, surgiram documentos, inclusive dos Estados Unidos, mostrando que meu pai era vigiado todos os dias. Em 1976, foram liquidados pela Operação Condor – ou morreram em condições pouco explicadas – vários líderes de oposição e ex-chefes de Estado da América do Sul. Jango e Juscelino Kubitschek entre eles. Neira Barreiro, ex-agente uruguaio preso no Rio Grande do Sul (em 2003), acabou confessando que era ele quem seguia meu pai e revelou a versão do envenenamento.

O que sentiu com a confissão desse ex-agente?

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Uma dor terrível. Dar de cara com uma pessoa que confessa ter feito parte do plano que matou João Goulart? É duro. A Comissão da Verdade, do governo federal, quer ouvi-lo. Mas ele foi solto recentemente.

Jango e a família sofreram outras perseguições?

Em Montevidéu, para onde fomos após o golpe, João Vicente foi preso, ainda adolescente, teve a cabeça raspada, ficou incomunicável por quatro dias. Minha mãe foi detida três vezes sob razões duvidosas. Uma vez – no período em que a carne estava racionada -, ela levava carne da nossa fazenda para casa. Eu via a angústia do meu pai. Ele suportava qualquer ataque que o atingisse, mas se desesperava com agressões à família. Com o golpe militar no Uruguai, as pressões cresceram e nos mudamos para a Argentina. Explodiram uma bomba no escritório que meu pai mantinha em Buenos Aires; ele tinha acabado de sair. Um grupo paramilitar acabou preso e confessou planos para sequestrar os filhos de Jango. Então, não por nossa vontade, no início de 1976, João Vicente e eu fomos viver em Londres.

Que memória você tem do golpe que derrubou Jango?

Eu tinha 5 anos, lembro pouco. Meu pai havia ido para Porto Alegre discutir se resistia ou não com Leonel Brizola (cunhado de Jango e ex-governador do Rio Grande do Sul) e com o comandante do Exército, que o apoiavam. Minha mãe pegou umas roupas nossas, colocou numa mala pequena. Deixou para trás, na Granja do Torto, quadros, presentes, carro, cavalos. Depois, alguém contou que viu as joias dela com outras mulheres, provavelmente esposas de oficiais. Só um vestido do Dener, que passava por ajuste, foi devolvido a ela anos depois. Saímos de lá às pressas num avião com Maneco Leães (piloto do presidente). Minha mãe estava tensa, mas segurou a onda. Eu quis saber para onde estávamos indo. Nunca vou esquecer a resposta do Maneco: “A gente vai dar um pulinho no Uruguai”. Eu refletia na adolescência: “Um pulinho que durou 12 anos difíceis”. Ainda no voo, meu irmão, com 6 anos, perguntou de que cor era o Uruguai. Sem saber o que falar, minha mãe olhou para o céu azul e disse: “É azul”. Ela conta que eu questionei: “E lá tem bananas?” Ficamos sem notícias de meu pai por quatro dias na prainha de Atlântida, numa casa emprestada, pequena e sem segurança.

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Não há uma lembrança boa da vida no exílio?

Meu pai tinha tempo para buscar a gente na escola, e isso era gostoso. Ele ouvia música brasileira com nostalgia, sentia o país de longe. Lembro dele escutando no rádio a Copa do Mundo, no México, em 1970. Sofria e vibrava com os gols. Eu ficava brava: “Como consegue torcer pelo Brasil depois de tudo que o Brasil fez com você?” Ele nunca mentiu, explicou por que não podia nos levar de volta para o nosso país. Foi um político ousado, quis igualdade de direitos, traçou reformas sociais e de base. Mesmo sendo um fazendeiro rico, sabia o que era a vida do pobre. Concebeu um plano de governo com gente progressista, como Darcy Ribeiro, Almino Affonso, Evandro Lins e Silva, Waldir Pires e Paulo Freire – com quem fez um plano para acabar com o analfabetismo. Seu governo foi curto e sofreu muita pressão. A direita achava que ele era comunista, a esquerda, que fazia alianças demais e era titubeante. Ele dividia, não era unanimidade como o Juscelino.

Por que João Goulart dizia que o exílio era uma invenção do diabo?

Ele tinha esperança de que a ditadura não se sustentasse por muito tempo e ele pudesse voltar para o Brasil, opinar e participar da vida política. O tempo foi passando, ele não conseguia retornar, se sentia solitário, ficava calado. Eu me lembro de Vinicius de Moraes, Toquinho e Raul Riff (secretário de imprensa) lá em casa. Apareciam outras visitas, mas poucas. À distância, meu pai havia respondido a mais de 80 processos – alguns, de malversação de dinheiro público, eram uma farsa, um absurdo. Nada ficou provado. Ele teve seus negócios inicialmente confiscados pelo governo brasileiro, a segunda via do RG e do passaporte negadas. Viajava com passaporte paraguaio.

Jango se arrependeu de não ter resistido ao golpe?

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Nunca. Tinha a consciência de que haveria um banho de sangue se insistisse em ficar na Presidência. Além das Forças Amadas, militares americanos estavam na costa brasileira prontos para atacar. Quinze dias antes de Brizola morrer (em 2004), fui à casa dele. Tomamos um vinho, e ele me disse: “Critiquei seu pai, fui contra a decisão de desistir, mas ele estava certo, teria sido um desastre”.

Há muitas lendas sobre seus pais. Dizem que ele passou a abusar do uísque, ela ficou doente e desequilibrada…

Nada disso, meu pai tomava uísque e gostava, mas sabia parar. Minha mãe teve problemas como todo mundo. Casou aos 17 anos, foi para o exílio aos 24. Nunca ficou seriamente doente. Foi e é uma rocha. Amiga dos filhos e dos oito netos (duas filhas de Denize e seis filhos de João).

Eles eram um casal charmoso, ícone do Brasil bossa nova. Mas diziam que tinham casos extraconjugais.

Ela era cortejada, sim, porque era bonita. Problemas, até tiveram. Ainda hoje, minha mãe diz: “Eu casei mesmo sabendo que Jango era mulherengo e assediado. Foi o homem da minha vida”. E ele podia ter flertes com outras, mas queria minha mãe. Às vezes brigavam. Meu pai se afastava, ficava uma semana sem aparecer. Depois voltava para ela. Conviveram muito bem. Ela estava ao lado quando ele morreu.

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As fofocas eram uma tentativa de denegrir a imagem dele, mostrar que Jango não tinha valores éticos e familiares?

Com certeza. Fazia parte de um plano para destruir a imagem do político e do homem.

O ex-presidente tinha muito ciúme de você?

Muito. Era terrível. Um liberal para fora. Dentro de casa, outra coisa (risos). Ele era carinhoso, embora tivesse dificuldade de aceitar que eu namorasse. Coisas da educação do gaúcho machista. Depois foi aceitando.

Você se reconciliou com o Brasil?

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Voltei para enterrar meu pai e fiquei. Doía ficar sem ele num país desconhecido. Passei um ano perdida, sem estudar. Tinha sido alfabetizada em espanhol, não escrevia direito em português. E não gostei de viver em Porto Alegre. Os jornais davam notícia de que os filhos do Jango tinham ido a tal lugar, feito tal coisa. Vim sozinha para o Rio e me senti à vontade. A vida estava efervescendo, tinha muitas festas. Decidi estudar história na PUC. Eu me irritava quando um colega dizia: “Seu pai fugiu do Brasil”. Eu respondia que não era verdade, que ele quis evitar uma guerra.

Você conseguiu levar uma vida normal?

Casei duas vezes e separei, tive minhas filhas, mas sinto que há algo pendente. Tenho que colocar um ponto final, acabar com a escuridão. A exumação do corpo do meu pai não vai definir tudo, é um começo para a restauração da verdade. Jango merece o lugar na história que não tem.

O que pretende fazer no Memorial João Goulart?

Conseguimos um terreno em frente ao Memorial JK, em Brasília; vamos arrecadar dinheiro para construir. O projeto, de 2011, é o último de Niemeyer. Temos muitos documentos para levar para lá, fotos, filmes, objetos. Há coisas com minha mãe, caixas com textos inéditos que o governo, de Lula para cá, tem mandado. Não quero que seja um museu lindo e vazio. Estou pensando em algo vivo, que tenha função social e faça sentido para as pessoas.
 

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