Organização holandesa leva aborto seguro a países onde a prática é criminalizada
Desde 1999 a ONG faz abortos em águas internacionais e oferece consultas virtuais
Quando trabalhava a bordo de um barco do Greenpeace, a médica holandesa Rebecca Gomperts se deparou com diversos casos de mulheres com problemas físicos e psicológicos causados por gestações indesejadas e pela impossibilidade da realização de um aborto seguro. Foi por isso que, em 1999, ela criou a Women on Waves, uma ONG que fornece contraceptivos, informação, workshops e abortos seguros e legais fora das águas territoriais de países onde o aborto é ilegal – ou seja, uma mulher estrangeira pode realizar um aborto legal nas águas internacionais da Espanha, por exemplo, onde o aborto é legal.
A organização começou então a receber centenas de e-mails de mulheres perguntando quando o barco estaria em seus países. Como reposta a essa demanda, nasceu, entre 2005 e 2006, a Women on Web, para que qualquer mulher em qualquer país onde não haja acesso a um aborto seguro possa realizar uma consulta virtual.
O MdeMulher conversou com Letícia, uma das brasileiras que trabalha na Women on Web desde 2014, quando se formou advogada. Ela conheceu a ONG quando trabalhava com direito das mulheres no Brasil.
Ela conta que a organização recebe mais de 80 mil e-mails por ano – cerca de 400 por dia – de mulheres do mundo inteiro que buscam orientação sobre aborto seguro. Desses 80 mil e-mails, 10 mil são de brasileiras.
“O perfil das brasileiras é o perfil da mulher que aborta: todos. Mulheres de todas as idades, com e sem filhos, de todos os credos, de todos os jeitos. O aborto é um procedimento médico extremamente comum. No Brasil, estima-se que uma em cada cinco mulheres faça um aborto durante sua vida”, diz.
Segundo ela, as mulheres chegam até a ONG desamparadas, sem ter com quem conversar ou em quem acreditar. “Muitas querem saber como realizar um aborto seguro, ou saber se o delas deu certo, ou estão com medo de ter uma complicação, e com ainda mais medo de ir a um médico e serem denunciadas, o que vai completamente contra o código de ética médica, mas sabemos que lamentavelmente ainda acontece”.
Uma das ações da Women on Web é o envio do remédio Misoprostol (no Brasil conhecido como Cytotec), com o qual a mulher pode realizar um aborto farmacêutico e seguro em casa. No Brasil, entretanto, desde 2014 os pacotes com o medicamento começaram a ser confiscados.
“Até 2014 os pacotes não eram confiscados e as brasileiras os recebiam normalmente. Não sabemos dizer a razão, mas desde então o Estado brasileiro vem violando o direito das mulheres e confiscando seus pacotes”, conta Letícia.
A opção que restou para as brasileiras que têm condições econômicas é a de viajar para países vizinhos (para a Cidade do México ou para Aruba ou Curaçao, por exemplo) e realizar o aborto cirúrgico em segurança, ou buscar o pacote em um país vizinho (Argentina, Uruguai, Chile). “Para quem não pode, resta o mercado paralelo, onde muitas mulheres encontram o misoprostol. Infelizmente, muitas também caem nas mãos de golpistas, que são os que lucram com a criminalização do aborto”, afirma a advogada.
O aborto no Brasil
No Brasil, o aborto é proibido por lei, salvo quando há risco de vida da mãe causado pela gravidez, quando a gravidez é resultante de um estupro e se o feto não tiver cérebro. Nesses casos, a lei garante que a mulher realize o procedimento gratuito pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Saiba aqui como fazer um aborto legalmente no Brasil.
Leticia se lembra, no entanto, de um caso em que esse direito não foi respeitado. “Há um tempo recebemos esse caso de uma menina de treze anos estuprada pelo padrasto em um estado brasileiro onde nenhum hospital oferecia o aborto seguro ao qual ela tinha direito. E sabemos que os pacotes que uma organização parceira envia são ilegalmente barrados no Brasil. Nós não podíamos alcançá-la, e quem podia, o Estado brasileiro, deixou-a ali, à mercê da violência sexual e forçada a ser mãe antes de ter sido menina”.
O projeto de lei 5069, da autoria do deputado afastado Eduardo Cunha, pode dificultar ainda mais o acesso ao aborto, ainda que nos casos já garantidos por lei, como o da gravidez causada por estupro. Um trecho do projeto de lei, por exemplo, afirma que “nenhum profissional de saúde ou instituição, em nenhum caso, poderá ser obrigado a aconselhar, receitar ou administrar procedimento ou medicamento que considere abortivo”.
O PL também quer penalizar pessoas que “instiguem, auxiliem ou induzam” uma mulher a fazer aborto. Nesse caso, o trabalho que Leticia realiza na Women on Web poderia até levá-la à prisão.
“É um projeto de alguém que desconhece muito profundamente a realidade ou que simplesmente odeia mulheres. Talvez as duas coisas. O aborto não precisa ser instigado: 42 milhões de mulheres abortam todos os dias, é um procedimento extremamente comum. Todas as pesquisas mostram que o fato do aborto ser legal ou ilegal não diminui o número de abortos, somente torna-os inseguros”, diz Letícia.
Segundo ela, o aborto legal já é dificultado: não há uma lista clara de hospitais que façam o procedimento, muitos hospitais exigem o boletim de ocorrência – o que não é solicitado para nenhum outro procedimento médico – e muitas mulheres são desacreditadas.
O zika vírus
No início do ano, a epidemia de zika vírus trouxe o debate do aborto mais uma vez à tona. O vírus foi relacionado ao aumento dos casos de microcefalia no Brasil. De outubro de 2015 a junho de 2016 foram notificados 7.830 casos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu uma declaração recomendando que o aborto fosse facilitado às mulheres grávidas que tivessem o vírus detectado.
>>> Leia também: Quem ouvirá as mulheres com zika que querem abortar?
O surto fez crescer a procura pelo aborto seguro. “A desinformação era enorme, assim como o medo. Nós acreditamos que o Estado não seria tão perverso em um momento de crise declarada pela OMS e tentamos novamente com os pacotes. Praticamente todos foram confiscados. O Brasil escolheu deliberadamente negar acesso à saúde para mulheres com zika, e isso é muito grave.”
Resiliência
Apesar das barreiras, a advogada diz que as mulheres brasileiras são resilientes. “Foram elas que descobriram que o Cytotec poderia ser usado de maneira segura para realizar abortos. Elas estão cada vez mais cientes de que devem estar lado a lado, porque ninguém vai nos dar direitos, eles devem ser conquistados. E até lá, as mulheres podem se organizar para acabar com a carnificina que a criminalização do aborto produz”.
A ONG holandesa apoia os grupos que queiram se mobilizar na luta pela causa. Eles podem entrar em contato para obter material e treinamento. “Hoje o aborto no Brasil é uma questão que perpassa todas as mulheres, mas também é questão de classe e cor. Em uma sociedade profundamente desigual, algumas mulheres podem escolher ser mães, outras são forçadas”.
Em suma, todas as mulheres brasileiras abortam, mas só as pobres, muitas vezes negras, é que morrem.
Atualmente a Women on Web não envia mais pacotes de medicamentos para o Brasil. Segundo Letícia, não é justo criar a expectativa de que o pacote vai chegar, quando a ONG sabe que isso é muito improvável. “Preferimos que as mulheres saibam como encontrar outras alternativas”, explica.
Para informações sobre aborto e para realizar uma consulta virtual, as mulheres podem entrar no site da Women on Web e, se tiverem alguma outra dúvida, escrever ao e-mail info@womenonweb.org. A ONG afirma que há vários golpistas com emails muito parecidos e que esse é o único contato da organização.
A organização é autofinanciada e vive de doações generosas de mulheres. “Ao fim da consulta, uma doação é solicitada. A mulher pode realizar a doação ou escrever para a gente explicando sua situação. A falta de recursos não impede nenhuma mulher de ter nosso serviço”, explica Letícia.