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A atuação das doulas pelo fim da violência obstétrica

As profissionais são focadas no bem-estar psicológico da mulher e fundamentais no movimento que busca resgatar o protagonismo feminino no parto

Por Esmeralda Santos, Bárbara dos Anjos Lima
Atualizado em 10 mar 2020, 10h56 - Publicado em 10 mar 2020, 09h00

A maternidade era um universo desconhecido para a baiana Chenia D’Anunciação quando engravidou de Zaya, sua primeira filha. Como toda mãe, seu desejo era que a bebê viesse ao mundo com saúde, e a única certeza era de que queria parir em casa. Ela se preparou durante os nove meses para o parto domiciliar, mas na hora, inesperadamente, teve de ser transferida para o hospital para uma cesárea.

Após 11 anos, formada em enfermagem e com o conhecimento que adquiriu como doula, julga a decisão tomada pelos médicos como desnecessária. “Depois da minha experiência, comecei a ler e estudar. A intenção era mudar o cenário do parto em Salvador, porém não tinha ideia de que o caminho seria árduo”, admite. Hoje, faz parte dos coletivos de doulas Lumiar e Doulas Pretas, ambos na capital baiana. Visiane Batista, enfermeira obstétrica e doula ao lado de Chenia no Lumiar, também viveu um caso de violência no parto de sua primeira filha, Marcela, há nove anos. “Cheguei ao hospital com 7 centímetros de dilatação.

Mesmo assim, o médico me fez usar o hormônio ocitocina”, lembra. O objetivo era gerar mais contrações artificialmente. “Eu não comia, não podia me movimentar e nem escolher em que posição ficar. Além disso, ele estourou minha bolsa e realizou a episiotomia (corte do períneo) sem me explicar nada.” A experiência das duas as fez abraçar a luta pelo parto humanizado. Foi então que conheceram a doulagem e seus benefícios. E se tornaram determidadas a informar futuras mães sobre seus direitos no momento do parto e reafirmar o protagonismo da mulher ao parir.

Empatia e Sororidade

Doula vem do grego e significa “mulher que serve”. Atualmente, é representada por profissionais que acompanham a grávida durante toda a gestação, o parto e o puerpério – fase após o nascimento do bebê, quando, na maioria das vezes, as mães ficam mais sensíveis. É uma função que pratica o feminismo ao dar mais autonomia à mulher, além de conectá-la à sua força. E também permite que a gestante escolha o que será feito com o corpo dela durante todo o processo.

A doula e psicóloga Raquel Jandozza, de São Paulo, explica que, antigamente, as doulas eram as comadres, mães, tias e amigas que prestavam apoio emocional à mulher. Muitas dessas relações se perderam com a burocratização do parto – processo que tornou os médicos obstetras os protagonistas do ato. Mas, com o movimento que vem se fortalecendo desde os anos 2000, as doulas estão retomando sua posição de apoio, desta vez com evidências científicas e técnicas naturais para que o parir aconteça da forma mais segura possível.

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Uma das precursoras desse processo no Brasil, a obstetriz e ex-doula Ana Cristina Duarte, de São Paulo, destaca que, no momento do nascimento, o trabalho da doula é fundamental, e vai além do fisiológico – que inclui banhos quentes, exercícios com bola, alívio de dor com massagens e aromaterapia. Durante a gestação, cabe a essa cuidadora trazer informações para a gestante, com livros e textos, e até indicar equipes que estejam de acordo com os valores dela.

O desejo mais íntimo daquela mulher – e também do casal – só a doula conhece. Ela é a porta-voz no parto”

Beatriz Kesselring, enfermeira obstetra do Núcleo cuidar (SP)

Em encontros pré e pós-parto, a doula mostra respeito à natureza de cada mulher, oferecendo um contato cuidadoso que aprende em sua formação. “O desejo mais íntimo daquela mulher – e também do casal – só a doula conhece. Ela é a porta-voz no parto”, afirma a enfermeira obstetra Beatriz Kesselring, do Núcleo Cuidar, em São Paulo. Esse é o grande diferencial das guardiãs do nascer: dar apoio emocional e levar toda a informação necessária para que as gestantes possam estar atentas a cada processo de sua gravidez. Diferentemente do que muitos acreditam, a doula não tem habilitação para a realização do parto sozinha, a menos que ela procure uma formação técnica.

Violência obstétrica

Enquanto atuava como doula, Ana Cristina passou por uma cesárea sem necessidade. “Na primeira gestação, o médico me informou que eu não poderia ter parto normal porque meu colo do útero era duro. Isso não existe. Hoje sei”, relata. Mas a surpresa maior viria logo depois, na visita no pós-parto. “Era uma véspera de feriado e ele tinha uma viagem marcada. Na visita, mandou um colega no lugar porque não estava na maternidade.” Ana Cristina, assim como Chenia e Visiane, engrossa uma estatística alarmante no Brasil.

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Segundo dados de 2016 da Organização Mundial da Saúde, o país detém a maior taxa de cesáreas do planeta, com 55% dos nascimentos, quando a recomendação é de que os casos não passem de 15%. “Há resistência de muitos médicos a receber pacientes que querem o parto normal porque esse é um modelo diferente daquele ao qual está acostumado, da cesárea com dia marcado. Ele vai ter de sair da zona de conforto, mudar a agenda, e, às vezes, até a remuneração é mais baixa”, afirma Raquel, que, apesar de reconhecer os problemas que rondam a cena obstétrica brasileira, enxerga a questão como cultural. “Nós vemos uma apropriação da cena do parto pela medicina. Quando a paciente diz que quer ter o parto normal, o obstetra pode se ressentir no seu lugar de médico. Não quer dizer que o profissional quer fazer o pior pelas mulheres, mas não dá para negar que é um sistema que foi se instrumentalizando, passando por uma série de violências”, justifica. Existem obstetras brasileiros com taxa de 100% de partos por cesárea.

As integrantes do coletivo Doulas Pretas, que trabalham para diminuir a violência obstétrica entre mulheres negras (Foto: Coletivo Doulas Pretas/Divulgação)

Sofrer algum tipo de violência obstétrica é realidade para uma em cada quatro mulheres no nosso país, segundo o estudo “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”, realizado pela Fundação Perseu Abramo em parceria com o Serviço Social do Comércio (Sesc) em 2010. É para mudar essa realidade que muitas doulas se unem na luta pelo parto humanizado. O coletivo Lumiar, por exemplo, trabalha promovendo cursos de formação de doulas, repassando a outras mulheres os saberes da assistência à gestante no parto, além de aprofundar questões de autoconhecimento e acolhimento das emoções. “Falamos sobre espiritualidade, ajudando-as a reconhecer sua visão do sagrado no processo do parto”, explica Elaine Valadão, uma das integrantes.

Já o Doulas Pretas tem também a intenção de diminuir outra estatística estarrecedora: segundo o Ministério da Saúde, 66% das mulheres que sofrem violência obstétrica são negras, o que faz delas as maiores vítimas. “Proporcionar o atendimento de uma doula negra é compreender a necessidade de enegrecer o cenário do parto e de dar a essas gestantes a possibilidade de se enxergar na profissional que irá atendê-las”, afirma Laura Daltro, uma das doulas do coletivo.

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Fenômeno da natureza feminina

Aos poucos, alguns profissionais estão mudando sua visão. “Eu não uso jaleco, peço para não ser chamada de doutora, meu consultório não tem mesa separando médico e paciente. No parto, sento no chão, peço opinião da pessoa que acompanha a mulher, da doula, da parteira. Choro junto, me emociono, sofro, rio, abraço, beijo, comemoro”, conta a obstetra Andrea Rebello, do Núcleo Cuidar, em São Paulo. Para ela, o médico precisa ter conhecimento técnico do assunto, mas sempre respeitando a autonomia de cada uma das pacientes.

Andrea tem oito anos de profissão e faz parte de uma geração de obstetras que já se formou na faculdade num momento em que a visão do nascer estava em transição. “É preciso coragem para sair do velho sistema, e a doula ajuda a mulher a fugir das situações de violência obstétrica”, diz Ana Cristina, que desde 2014 organiza o Siaparto, simpósio para os profissionais da área sobre a obstetrícia brasileira. Apresentando evidências científicas, ela acredita ser possível mudar o olhar sobre o parto. “No ano passado, foram 350 obstetras. É um bom número, são profissionais alterando sua conduta e reduzindo as taxas de cesáreas e intervenções desnecessárias”, conclui.

O médico ginecologista e obstetra Gustavo Kesselring, também do Núcleo Cuidar, atua há mais de 30 anos e teve seu olhar transformado pelo movimento recente. “Entendi que o parto não é um fenômeno médico, e sim um fenômeno da natureza feminina. Os profissionais da área de saúde devem estar ao lado da mulher para apoiá-la nesse momento, intervir somente se necessário e com embasamento nas melhores provas científicas”, afirma.

(Foto: Talita Ciardi/Divulgação)

Hoje em dia, Gustavo não realiza os partos ou acompanhamentos sem a presença de uma doula. “Costumo dizer para as pacientes que o tripé de profissionais que devem estar presente no parto é a doula, a enfermeira obstetra e o médico”, diz. Também são comprovados benefícios para a equipe médica. “Reduz a chance de cesárea, o uso de analgesia, a necessidade de parto instrumental (com fórceps/vácuo) e traz maior percepção positiva da mulher a respeito da sua experiência de parto”, diz Andrea.

A ampliação do trabalho das doulas já é uma realidade em alguns estados brasileiros. Em 14 cidades do país há alguma variação da Lei das Doulas, que permite a entrada delas em maternidades e casas de partos, sejam elas públicas ou privadas, além do acompanhamento nos exames de pré-natal. Claro que nem tudo são flores. Laura Daltro, do coletivo Doulas Pretas, conta que, na Bahia, as doulas na maioria das vezes são impedidas de atender gestantes no Sistema Único de Saúde (SUS). “Temos que entrar como acompanhante, fazendo com que a mulher seja obrigada a escolher entre nós e o pai da criança”, conta.

Camila Borba Luz é enfermeira obstetra há sete anos no centro obstétrico do Hospital Conceição, em Porto Alegre, referência de parto humanizado no SUS. “Mesmo em um lugar modelo, vejo que ainda há resistência para a presença da doula no ambiente hospitalar”, fala. Muitos profissionais não concordam que alguém remunerado por fora acesse o sistema gratuito de saúde. “Nesse caso, a solução seria os órgãos públicos oferecerem o serviço de forma gratuita.” Apesar de tudo, Camila ressalta que existem esforços positivos. “Tive minha filha há cinco meses no hospital em que trabalho. Meu parto foi totalmente humanizado, com a presença da minha doula e do meu marido”, descreve.

O nascer é feminino

As doulas conscientizam a mulher da sua capacidade num momento delicado, em que encontram sensações e acontecimentos desconhecidos até então – mesmo para quem já teve filhos. A intenção não é fazer com que a mãe brigue com seu médico, mas mostrar a ele o que está buscando para o nascimento de seu filho. E, diferentemente do que muitos imaginam, tem menos a ver com parir em casa ou dentro de uma banheira. Até uma cesárea pode ser humanizada.

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(Foto: Talita Ciardi/Divulgação)

Basta que o protagonismo e a autonomia da parturiente sejam respeitados. “Eu aprendo muito com as doulas. É preciso lembrar que violência obstétrica é uma violência de gênero, uma violência contra a mulher. Quando empoderamos essas mulheres, elas têm mais domínio para lutar contra essas situações”, afirma Andrea. Gustavo concorda que a atuação das mulheres é fundamental para transformar o cenário do parto. “O que tenho observado é que, quanto mais avançada a sociedade, com consciência de que a mulher é dona do seu corpo e que ela pode ter suas escolhas, melhor a assistência ao parto. É o poder da mulher frente ao sistema de saúde e político.”

 

 

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