#TemQueFalar “Era criança e meu padrasto passava a mão no meu peito”
A leitora Dulce* divide sua história com a gente
Nas últimas semanas, as mulheres brasileiras se uniram em torno do tema #PrimeiroAssédio. A mobilização levou muitas delas a compartilhar em suas redes sociais casos semelhantes ou ainda mais graves, que deixam sequelas profundas em suas vítimas. Algumas delas, porém, preferiram guardar suas histórias para si, por medo de ser identificadas por seus agressores. Publicamos a história de uma leitora que, 15 anos após um ataque sexual, ainda tem medo de ser encontrada. Não demorou para que outras mulheres nos procurassem: Gabriela*, Marcela*, Mariana*. Em comum, o desejo de dividir seus traumas, medos e culpas. Especialistas apontam que falar sobre eles é uma das maneiras eficientes de superá-los. Por isso, criamos o movimento #temquefalar. Um espaço de cura, que incentiva a troca de experiências e, sobretudo, traz o assunto à tona, para evitar novas vítimas entre crianças e mulheres.
Leia o relato da leitora Dulce*:
“Obrigada por escancarar essa porta e deixar que a gente se encontre em um lugar para contar essa dolorosa história que trazemos dentro dos nossos corações.
Meus pais se separaram quando eu tinha 10 anos de idade. Meses depois, minha mãe apresentou um homem, conhecido da nossa família, como namorado dela. Meu pai afirma que eles tiveram um caso antes; e ela nega, claro.
O fato é que esse homem já tinha um histórico estranho gravado na minha memória, pois sempre que eu precisava dos serviços dele, que era dentista, ele dava em cima das babás que trabalhavam na minha casa e nos acompanhavam nas consultas.
A separação fez com que nossa vida financeira fosse por água abaixo. Morávamos em uma casa ainda em construção e só havia um quarto. Tenho uma irmã mais nova, que dormia no mesmo quarto que a minha mãe, e eu, como estava ficando mocinha, preferia dormir na sala para ouvir música e ter um pouco de privacidade.
Esse homem ia para a nossa casa aos finais de semana. Inicialmente, era muito bom pra nós. Ele nos levava para passear, para praia, sítio e dava presentes legais. Imagine 20 anos atrás ter um computador? Era muito moderno e legal. Minha mãe insistia que o chamássemos de pai.
O meu pai nunca nos deu assistência alguma. Foi curtir a vida dele, pois eram muito jovens na separação. Porém, tenho certeza absoluta de uma coisa: se alguém fizesse mal pra nós, ele sairia de onde estivesse para nos defender. Penso que ele seria capaz de matar e morrer por nós. Esse foi o motivo de nunca ter falado nada sobre isso com ele.
Hoje me lembro de cenas em flash dos abusos do namorado da minha mãe. Ele pedia que eu sentasse no colo dele, enquanto ele se esfregava em mim e me ajudava na lição de casa. Eu acordava no meio da noite com ele ao meu lado, passando a mão nos meus seios que estavam nascendo. Quando eu despertava, ele rapidamente me cobria e ia embora sem falar nada.
Até que, em uma manhã , minha irmã acordou e me chamou pra conversar lá na rua. Me contou que o homem a obrigou a masturbá-lo e que não tinha sido a primeira vez. Eu fiquei enlouquecida, corri pra casa de uma amiga e pedi ajuda da mãe dela, que me orientou a voltar pra casa e contar pra minha mãe.
Obedeci e quando contei, ela me disse: ‘Ele me ajuda muito financeiramente aqui em casa, eu não vou falar nada com ele. Se você quiser, fale com seu pai’.
Com apenas 10 anos, eu tive a sabedoria de que se falasse para meu pai, estaria acabando automaticamente com a vida dele, pois sei que ele perderia a cabeça e faria alguma coisa com esse homem. Resolvi me calar.
Naquele dia, a minha mãe morreu pra mim. Eu jurei dentro de mim que, assim que eu pudesse trabalhar e me sustentar, iria embora de casa.
Aos 16 anos, eu fui embora, mas é muito difícil se sustentar com essa idade e eu precisei voltar. Ela estava casada com outro homem, tentei ficar o tempo suficiente apenas para me reestruturar e voltar a morar sozinha.
Eu já tinha 18 anos e comecei a receber e-mails de um tal de Lucas, que dizia estar atraído por mim e que queria que eu fosse amante dele, contando que era casado, mas que me via de biquíni e que se apaixonou. Era o marido dela.
Eu cheguei a pensar que fazia algo errado, pois era a segunda vez que isso acontecia. Eu devia ser culpada disso. Dessa vez fui embora e não falei o motivo pra ela, anos depois ele a traiu e aproveitei essa oportunidade para mostrar os e-mails. Mais uma vez ela se calou.
Minha vida foi muito difícil. Eu tinha uma sensação de abandono, um vazio insuportável, gastava meu dinheiro todo com roupas, sapatos. Queria mostrar que era feliz e ostentava uma vida que não podia bancar, me endividava cada vez mais tentando suprir esse vazio que me perseguia.
Eu coloquei toda minha concentração no trabalho e virei uma grande profissional na minha área, ganhando bem e tendo uma vida profissional muito diferente do caos que vivia na minha vida pessoal. Trabalhava sem parar e, quando chegava o final de semana, não saía da cama. Era uma confusão interna. Eu só atraía tranqueiras de amigos e namorados.
Tinha relacionamentos com homens mais velhos, relações nada saudáveis, abusivas e, por fim, com um homem que me traia e abusava psicologicamente de mim. Fiquei endividada, ele me fez largar um emprego ótimo que eu tinha e por fim, óbvio, me largou também.
Cheguei ao fundo do poço, pensei em me matar. E descobri que a única forma de me salvar seria procurar uma psicóloga. Conheci um grande amigo que me ajudou nessa etapa.
Ele me levou para a escola de meditação. Descobri o budismo, que me ajudou a entender tudo. Assumi meu sofrimento, deixei a dor aflorar, verbalizei tudo que estava dentro do peito e usei essa dor para me transformar em uma pessoa melhor. Perdoei minha mãe e meu pai pelo abandono que sentia.
Agora me sinto quase curada. A dor e a revolta voltam, às vezes, mas eu entendi que quero meus pais ao meu lado e procuro não lembrar desse tempo. Assumi a responsabilidade de ser feliz. Isso me dá a certeza de que o controle está na minha mão e não nas mãos dos outros.
Agora eu estou com meu noivo há 5 anos e vamos nos casar em breve. Com ele descobri o amor. Na verdade, eu consegui dar e receber, porque, apesar de tudo, nunca deixei de acreditar na família e nos relacionamentos. Sabia que eu tinha coisas boas para oferecer, só não achava que merecia ser amada.
Aos poucos, vou me abrindo e cada vez consigo subir um degrau e confiar. Continuo me tratando, lendo muito e vendo o lado positivo em tudo que acontece. Existe dentro de nós uma força que pode nos levar onde queremos chegar.
Tudo tem a hora certa. Hoje eu penso em ter filhos, mas antes quero me preparar para isso, quero ser a mãe que não tive, amar e proteger minha cria. Minha família vai ser estruturada no amor. Hoje, eu sei que fui vítima disso tudo e consigo ver que dias melhores estão por vir.”
*Nome fictício.
Se você também quiser dividir o seu relato com outras leitoras, envie para redacaoclaudia@gmail.com. A sua identidade será preservada.