Na dor, na raça: a despedida de Quitéria Chagas do carnaval do Rio
A passista, doula, feminista - não necessariamente nessa ordem - se despediu do Carnaval depois de 20 anos como Rainha da Bateria do Império Serrano
Quitéria Chagas confessa que mal dormiu desde que deixou o Sambódromo do Rio, depois que desfilou – pela última vez – pelo Império Serrano. Rainha da bateria desde que tinha 20 anos, hoje, aos 40 (casada e mãe de uma menina), ela conversou com CLAUDIA que nem sendo veterana conseguiu controlar a emoção. “Eu acreditei que pudesse entrar na avenida mesmo sem estar conseguindo caminhar, colocar o pé no chão”, ela revelou depois do desfile. “Não conseguia ter mobilidade, fiquei deprimida. Sou psicóloga, mas sou humana!”, ela riu.
A dor que Quitéria menciona é uma lesão muito séria no joelho que – se tivesse ouvido os médicos – a impediria de desfilar. Com o rompimento dos ligamentos no joelho esquerdo e uma lesão no menisco, colocar o pé no chão era uma imensa dor, sambar então!
“Porque vou operar logo em seguida, não posso tomar medicação. Estava sem estabilidade, e gosto de sambar, de deslizar e riscar na avenida, mas não pude. Dei 100% de mim na avenida, mas não pude das 100% da minha dança”, ela lamentou. A bota de neoprene ajudou e o salto foi para os pés apenas na hora de entrar, antes os chinelos era o que conseguia usar. “Estava tão feliz e emocionada, que sabia que nada de ruim iria acontecer”, Quitéria revelou.
No Instagram, ela fez um emocionante desabafo: “eu não aceito derrota”, escreveu.
A Império Serrano é uma das escola de samba mais tradicionais do carnaval do Rio, mas hoje está no Grupo de Acesso. Na sexta (21), fez um desfile emocionante e marcado pelas lágrimas, na sexta (21), 1º dia do desfile do Grupo A. É que além da despedida de Quitéria – há 20 anos rainha da bateria da escola – os carros alegóricos estavam inacabados e as saias da ala das baianas não ficaram prontas à tempo para a apresentação. Elas entraram na avenida, chorando, sem elas.
“As baianas são as fundadoras do carnaval, elas construíram a nossa arte”, lamentou Quitéria. “Foi uma falha com um patrimônio cultural”, disse.
“Eu chorei junto com elas. Era a minha minha dor e a delas e as vi dançando, cantando como se nada tivesse acontecendo”, se emociona a rainha.
O enredo de 2020, “Lugar de mulher é onde ela quiser”, exaltou a força feminina na sociedade e fez uma homenagem a personalidades da escola, como a cantora Dona Ivone Lara e a ex-presidente, Neide Coimbra. Para Quitéria, foi uma despedida com um tema que fala alto com seu coração feminista.
“Eu sempre fui de questionar e sabia o que queria da vida. Herdei isso da minha mãe, que era faixa preta de caratê”, ela conta. “Nem sabia o que era feminismo. Se o nome é esse, então é o que sou: feminista. Tento transformar o não em sim desde pequena”, afirma.
Quitéria quer passar essa certeza para sua filha, que ficou em Milão (onde elas moram), com o pai. O reencontro será apenas em mais algumas semanas, e a saudade aperta.
A aposentadoria do Império Serrano não vai dar tempo de folga para Quitéria. Psicóloga formada no Brasil, está estudando mais dois anos para poder atuar profissionalmente na Itália. Além de psicóloga, Quitéria é doula, mulher que orienta e assiste a nova mãe no parto, e ela tem muito orgulho desse trabalho. A psicologia vai ajudar ainda mais a desenvolver sua habilidade.
Quanto à coroa de rainha de bateria, agora vaga, ela ainda não sabe quem vai substituí-la, mas torce por uma mulher da comunidade. “Somos respeitadas [rainhas de bateria], mas não vivemos de luxo. É muito difícil manter o reinado com o custo das fantasias. Não há um quesito para nós, não tem estandarte de ouro: sai tudo do nosso bolso. Tomara que isso mude”, ela lança a campanha.