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Eles buscam transformar a vida dos moradores da Cracolândia

A atitude de Carlos Weis, Julio Docsjar e Ricardo Cypriano mostra que paternidade vai muito além da ligação de sangue

Por Isabella D'Ercole Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
24 ago 2017, 16h11

Diariamente, os jornais e a TV abastecem o público com imagens da degradação e miséria da região conhecida como Cracolândia, no centro de São Paulo. Ali, estão concentrados mais de mil moradores em situação de rua, muitos deles usuários de crack, o que forjou o nome popular do local. A última coisa que se espera encontrar por lá é amor de pai, carinho e compreensão.  Mas isso existe.

É possível ver homens – alguns voluntários e outros exercendo atividade profissional – levando comida, roupas, cuidados e, mais do que tudo, esperança. Dedicam a estranhos a atenção que dão aos seus filhos. O pastor José Ricardo Cypriano, 42 anos, conhecido como Rica, é um deles. Em um quarto de sua casa, dorme Tom. Usuário de drogas, ele tem um passado de sucesso como maquiador e se orgulha da cartela de clientes, que incluiu até a apresentadora Hebe Camargo.

Nos últimos anos, contudo, vem sofrendo com recaídas. Morador da Cracolândia, começou a frequentar a sede do projeto Da Pedra para a Rocha, na Rua Helvétia, o epicentro do tráfico e consumo de drogas. O laço criado entre pastor e fiel levou Tom a viver no endereço de Rica, na Grande São Paulo, em meados de julho. Ali, ele é acompanhado para superar as crises de abstinência. Juntos, eles oram.

Os filhos de Rica, Beatriz, 14 anos, Davi, 8, e Josué, 3, observam sem espanto ou medo. “Eu levo as crianças à Cracolândia para verem a verdade. Funciona. Está no coração deles a vontade de ajudar o outro. Querem alimentar quem tem fome”, explica. E os pequenos se orgulham das ações dele.

Rica é pastor da Igreja Bola de Neve. Chegou à região há cinco anos, onde, toda sexta, às 21 horas, promove um culto. Por trás de uma porta de metal estão cerca de 40 cadeiras voltadas para um altar improvisado, com a prancha de surfe, símbolo da igreja, apoiada sobre uma bancada de madeira.

A igreja improvisada fica lotada na hora do culto (Victor Moriyama/CLAUDIA)

Os moradores de rua o abraçam, beijam, pedem cobertores, perguntam pela sopa, que é preparada em uma cozinha nos fundos e servida após a cerimônia. Ele ouve as histórias contadas pelos usuários e dá conselhos. A relação de confiança é, segundo o pastor, a chave para convencê-los a sair da droga.

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Fala por experiência própria. Há 18 anos, trabalhava como engenheiro químico e era ateu quando começou a cheirar cocaína. Depois de um tempo, a mulher o deixou e levou junto Beatriz, na época um bebê. Com o lar destruído e sem a família, Rica percebeu que precisava parar antes de se entregar por completo. “Não escondo minha história nem da minha mãe nem dos meus filhos, muito menos dos dependentes. Sou o exemplo deles, não posso me corromper.”

Basta seu carro virar a esquina da Helvétia para começar a aglomeração de pessoas querendo cumprimentá-lo. O trabalho gera resultados: por meio de vídeos postados na página do projeto no Facebook, junta dinheiro para enviar moradores da rua de volta para suas famílias. Em uma semana, chega a colocar quatro pessoas em aviões ou ônibus que vão para diferentes estados e até para outros países, como a Bolívia.

“Nem todos nessas ruas estigmatizadas usam drogas, mas morar aqui já os expõe à vulnerabilidade, à violência do lugar e às doenças. Não tem descrição a sensação de ver a felicidade deles quando os levamos à rodoviária ou ao aeroporto. E eu ligo para saber se chegaram bem, se estão conseguindo se manter longe da droga”, conta.

Nesse momento, a atitude é de pai zeloso. Rica estabeleceu parcerias com clínicas de internação, pagas mensalmente com cestas básicas. Desde 2012, seu time fez cerca de 400 internações.

Em uma seara bem diferente trabalha o voluntário paulistano Julio Dojcsar, 47 anos, pai de Sebastião, 9 anos, e Olga, 6. O artista, cenógrafo e grafiteiro comanda o projeto Casa Rodante. Dirigindo uma caminhonete com a caçamba transformada em casinha, ele chegou à Cracolândia em 2014. As crianças enlouqueceram de curiosidade.

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A ação, que incentiva a união da vizinhança, inclui aulas de jardinagem, de bordado, promove a leitura e leva um palhaço para divertir os pequenos. “Viramos referência para eles. Um dia, um menino me perguntou por que eu vivia sorrindo. Imagina a vida que uma criança leva para considerar que um sorriso não seja algo natural.”\

Julio em frente a uma construção na região. Onde antes existiam grafites e lambe-lambes feitos pela Casa Rodante, agora estão paredões sem graça. Bancos e vasos levados pelo projeto também foram retirados. (Victor Moriyama/CLAUDIA)

Julio acredita que o laço da comunidade harmoniza o convívio – e essa ideia pode ser ainda mais eficiente na Cracolândia. Ele aprendeu a melhorar o espaço público com o pai, líder comunitário no bairro do Itaim Paulista, na Zona Leste, que  brigou por escolas e rede de esgoto e mostrou ao filho que, se a população não luta, nada acontece.

Mas a tarefa não é fácil. Nos três primeiros meses, quando terminava a jornada na Cracolândia, Julio não dormia tranquilo. Acordava com pesadelos. O clima em casa também ficou ruim. Sentiu que ele e a esposa – envolvida no projeto – passaram a falar de forma exaltada, impositiva. Entendeu que era o reflexo da vida tensa da região; portanto, teriam que adotar estratégias para não levar o peso para casa. Conseguiram.

“Na Cracolândia, o que fazemos é dar colo, acolher, reconfortar”, explica. “Nada desse papel de chefe de família autoritário e ausente, tão comum no Brasil, adotado inclusive pelo Estado como comportamento-padrão.” O caminho foi estabelecer um diálogo aberto, assim como acontece na  casa dele.

Com as crianças do projeto, Julio aplica o que define como pedagogia precoce. Elas estão expostas a uma situação de caos, aprendem o que é a droga muito cedo. Os adultos precisam se adiantar, ensinar antes que a rua o faça. “Os pequenos entendem tudo. É bobagem mentir ou ter medo de explicar. Elas captam mais do que a gente imagina”, diz.

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Segue a regra com o filho mais velho, Tião, que o acompanha muitas vezes à Cracolândia. O menino brinca com as crianças, passa o dia se divertindo. Depois, em casa, escuta Julio falar sobre a diferença de oportunidades e a importância de mudar essa desigualdade. “Não dá para maquiar; eu o apresento ao mundo real”, conta.

O artista ficou algumas semanas sem ir à Cracolândia. O que o assustou foi a violência da controversa ação que aconteceu no dia 21 de maio, quando policiais civis e militares invadiram a região e soltaram bombas contra os dependentes. Muitos apanharam. A justificativa foi a apreensão de drogas e a prisão de traficantes. Os donos do negócio precisam, de fato, ser processados e responsabilizados.

A truculência foi criticada por vários setores da sociedade e também interrompeu muitas iniciativas sociais e voluntárias realizadas ali. Em seguida, mais uma polêmica: a prefeitura tentou instituir a internação compulsória, contra a vontade do usuário, que foi barrada pela Justiça.

A ação era parte do Projeto Redenção, criado pelo prefeito João Dória, questionado por muitos especialistas. O programa intersecretarial tem seis diretrizes, entre elas o tratamento do paciente com dependência química durante e após a desintoxicação, e disponibiliza equipes de abordagem e acolhimento. “Prevê também a revitalização do centro, a limpeza da região e a fiscalização de imóveis para que sejam seguros e estejam regularizados”, explica Eloisa Arruda, secretária municipal de Direitos Humanos e Cidadania.

Desde os anos 1990, uma gestão após a outra implementou programas diferentes para humanizar a região. Nenhum, porém, mostrou muita eficiência. A degradação do centro, contudo, vem de antes, quando o Terminal Rodoviário da Luz, que existia ali, foi desativado, em 1982.

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Os pontos de comércio diminuíram  e os hotéis para turistas tornaram-se pensões de baixo custo, abrigando a população vulnerável. Hoje, um quarto com banheiro custa 500 reais por mês. O centro tornou-se um reduto de migrantes que não conseguem se sustentar em outras regiões e, aos poucos, foi tomado pelo comércio de drogas.

O fluxo, como é chamado o ponto em que as pessoas compram e consomem entorpecentes, já teve diversos endereços, mas sempre na mesma área. Dormir no fluxo significa ficar menos suscetível à violência noturna das ruas. Especula-se que ele junte até 1,8 mil pessoas nas noites de sexta e nos fins de semana.

O advogado e coordenador do núcleo de direitos humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Carlos Weis, 51 anos, trabalha com casos da Cracolândia desde 2012. Ele presenciou, este ano, o aumento do número de pessoas: 160% maior que em 2016, segundo uma pesquisa da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de São Paulo.

“Minha missão é trazer para essas pessoas um Estado com outra cara, solidário”, diz Carlos (Victor Moriyama/CLAUDIA)

Foi Weis quem comandou a ação judicial que impediu a prefeitura de levar adiante as internações compulsórias. Da primeira vez que esteve na área, se surpreendeu. Achou que encontraria um cenário de guerra, com zumbis dopados e largados no chão. Em vez disso, ouviu um rádio tocando música, homens e mulheres dançando e rindo. “Achamos que aquilo é um inferno porque somos de bairros de classe média, mas ali também se formam relações, há vínculos de amizade e amores”, descreve.

Ele continua seu trabalho não só por dever profissional – poderia resolver tudo do gabinete. Dois motivos o movem: a solidariedade e o pequeno Mathias, 3 anos. Quando descobriu que seria pai, Carlos entrou em pânico. O choque de realidade veio ao assistir ao parto natural da mulher. Passou, então, a refletir mais sobre a situação política e social do país, que está longe do que ele considera ser bom para todos.

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Entende que é preciso ajudar a mudar isso para que Mathias e as novas gerações cresçam em uma sociedade melhor. Para ele, hoje faltam liberdade e respeito à diversidade. E sobra medo. A Cracolândia é uma amostra concentrada dessa condição: o preconceito encoraja a atitude de culpar o usuário e criminalizá-lo.

“Não compreendo quem tem raiva dessas pessoas. O que elas fizeram? É porque são pobres? A sujeira incomoda?”, provoca. Sua missão de ofício é levar até elas um Estado com uma cara diferente daquela apresentada na noite do dia 21 de maio. “Um Estado solidário e compreensivo”, diz. Enquanto isso não acontece, ele ensina a Mathias a grandeza da empatia.

“Outro dia expliquei por que existem moradores de rua. Apesar da pouca idade, ele ficou intrigado”, lembra. A força mais transformadora, para Carlos, é o amor entre pai e filho, que deixa um traço na personalidade da criança, a faz sensível aos outros.  “Quero para ele uma cidade que demonstre esse lado humano; e que Mathias possa viver, sair à rua e não crescer dentro do shopping”, completa.

Esses três homens, assim como centenas de anônimos envolvidos com a Cracolândia, acreditam em dias melhores. Começam sua ação em casa e se colocam na frente de batalha, enfrentando a violência policial, a dos traficantes e das ruas. Doam tempo e amor. “A fé sem obra é morta. Não basta criar projeto no papel, falar que faz. Tem de ajudar de verdade, vir aqui e estar pronto para o que vier”, defende Rica.

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