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“Estava em Inhotim quando a barragem rompeu”: médico relata o que viu

O psiquiatra Luiz Scocca estava no museu no momento da tragédia em Brumadinho

Por Luiz Scocca
Atualizado em 27 jan 2019, 23h30 - Publicado em 27 jan 2019, 18h54

Há muito tempo queria conhecer Inhotim na cidade de Brumadinho e parecia ter escolhido o dia certo. O sol generoso, nenhuma nuvem no céu, temperatura agradável. Os funcionários muito atenciosos, simpáticos… que dia! A manhã daquela sexta-feira pelo parque tinha sido encantadora e o almoço tranquilo para então continuar a visita à tarde. Mas…

Os funcionários já não eram os mesmos. Olhos arregalados, pupilas dilatadas, brancos como um pedaço de papel. “Senhor, não vou poder anotar seu pedido! Estourou a barragem e teremos que fechar Inhotim.” Como assim? É verdade? “Sim, pedimos que se encaminhem à saída do parque!” O sentimento foi de medo e o pensamento foi um só: Mariana!

É muito estranha a sensação de estar no meio de uma tragédia. O fato é que não estamos preparados para eventos como esses, sejam catástrofes naturais, sejam provocadas pelo ser humano, como no caso. Cientistas que dedicam-se ao tema afirmam que temos que aprender sobre a cultura do risco, pois nossa população cresce muito e, embora a tecnologia melhore, os governos subestimam as necessidades de investimento em engenharia civil, planejamento e treinamento da população para tais situações.

No caso de Inhotim, o preparo e a competência do staff do parque foi impecável! Eles estavam preocupados com seus familiares – nessa região muita gente trabalha na mineração da Vale, então temiam pelos seus amados. Mas, sem descuidar da operação de evacuação, com  seus carrinhos e motos buscando pessoas passavam dizendo que “tem mais 2 lugares aqui”.

Lembro das expressões preocupadas. Pessoas iam tirar dúvidas e eles diziam “sim, a senhora quer a devolução do dinheiro?“ Alguém pensaria nisso com uma barragem rompida e os detritos vindo? Pois aconteceu! Presenciei gente dando escândalo pelos 40 reais ou porque não queria sair do parque. Saímos em nossos carros, em comboio, velocidade alta, estrada de terra poeirenta. Se não fosse trágico, seria uma aventura.

Os fatos trágicos aconteceram relativamente longe e relativamente perto. Não atingiu fisicamente Inhotim, mas psicologicamente. Ninguém sabia o impacto da coisa. Era perto, eles tinham trabalho a fazer: salvar as pessoas, salvar a si mesmos e tentar saber de parentes e amigos. A mídia finalmente nos trouxe a dimensão da tragédia: maior que Mariana. Quase 300 desaparecidos, incluindo funcionários da Vale, de pousada, turistas, etc.

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À noite, em um restaurante de um ponto alto e sem os riscos da cidade, funcionários com um sorriso cordial e olhos mareados. Eles já sabiam que tinham parentes e amigos desaparecidos. Mantinham uma triste esperança. O dono do restaurante era amigo da proprietária da pousada destruída. Tinham feito cerâmica juntos no dia anterior.

Outros tantos tinham amigos de infância desaparecidos. Há também a preocupação com o futuro, com os empregos e o comércio, pois muitos turistas deixarão de vir a Inhotim imaginando a tragédia que afetou algumas áreas de Brumadinho, embora distantes do parque. Também pelo inevitável fechamento da usina. De novo, Mariana vem à mente, onde uma comunidade inteira foi obliterada.

Estuda-se muito o processo de luto dos indivíduos, mas algo muito maior acontece em tragédias comunitárias. Há a revolta pessoal e a coletiva, especialmente com os órgãos governamentais e a fiscalização dessa empresa. Era inevitável cruzar com as pessoas nesse estado e perceber o desespero.

Uma enorme quantidade de trabalho vai demandar toda a atenção dos profissionais de saúde mental. As três fases do processo de luto das tragédias coletivas (crise, processamento e adaptação) orientam a maneira de ajudar a população a lidar com a tragédia, e o momento é de crise. Médicos de várias áreas, clínicos, cirurgiões, intensivistas, infectologistas e psiquiatras, bem como socorristas, psicólogos e assistentes sociais estão mobilizados. Todos terão de lidar com uma grande dor, pois conhecerão muitas das vítimas.

É característico desse tipo de tragédia que a ajuda venha de áreas diferentes da afetada, pela fragilidade dos serviços locais, como fornecimento de água e comida, mas também auxílio médico. É preciso haver disponibilidade das pessoas em ouvir – foi uma oportunidade que tive com algumas pessoas.

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Há e haverá raiva, frustração, angústia e ansiedade, e as dimensões exatas da tragédia virão à consciência dos habitantes, especialmente os afetados. Será hora de se unir, compartilhar opiniões, encontrar soluções, mobilizar os representantes eleitos para mudanças bem como avaliar as próprias possibilidades de mudança. Aqui será testada a resiliência, a inteligência, a força de vontade. Haverá rituais – religiosos, homenagens, etc. – e são importantes nessa fase de reconstrução.

Muita força a Brumadinho. Às famílias das vítimas, aos habitantes e profissionais envolvidos no salvamento e tratamento dos que necessitam agora e virão a necessitar. E a nós todos, Brasil. Voltemos nossos olhos para lá e ajudemos como pudermos.

Luiz Scocca é psiquiatra pelo Hospital das Clínicas da USP, membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e da Associação Americana e Psiquiatria (APA). 

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