A histeria anticelular já pegou você?
Nossa editora e colunista Liliane Prata questiona: precisamos mesmo nos dividir entre quem é refém do celular e quem tem birra da tecnologia?
Eu estava em frente ao balcão da lanchonete do cinema, em cima da hora da minha sessão e esperando minha pipoca chegar, quando surgiu do nada, diante do meu nariz, um celular, numa mão esticada vinda eu não sabia de onde. Olhei: era uma mulher com respiração ofegante, olhar agitado, que foi logo dizendo:
– Tira uma foto minha, mas pega da cintura para cima e chega um pouco pra sua esquerda, mostra esse cartaz aqui, tá bom?!
Ela tinha uns quarenta anos, aparentemente estava sozinha, assim como eu, e exalava ansiedade por todos os poros. Juro: parecia estar sob o efeito de, no mínimo, doses cavalares de cafeína. Mas acho que era só pressa de postar no Instagram, mesmo.
Meio hesitante, pensando se era comigo que ela estava falando, peguei o celular (na verdade, não é nem que eu peguei: depois de falar, ela praticamente jogou o aparelho na minha mão – se eu não tivesse agarrado, ele cairia). Então ela fez uma pose e ficou lá, de pé, parada na minha frente. Minha pipoca chegou, mas isso não importava a ela. Eu tinha horário, mas isso também não interessava. A gente nem se conhecia e ela não só não me pediu “por favor” como foi me dirigindo para tirar a foto do jeito que ela queria, como se eu fosse a fotógrafa particular dela.
Tirei duas fotos, deixei o celular dela no balcão, peguei minha pipoca e saí, incomodada com a cena. Imaginei que aquela tensão toda para tirar a bendita foto (que provavelmente seria postada com a legenda “Cineminha à tarde! Que delícia!”) também a acometeria depois da postagem, na forma de ansiedade por curtidas e comentários. E caminhei até a sala pensando: definitivamente, eu faço parte do time dos que usam muito o celular. Muito, mesmo. Então, quando o uso das pessoas à minha volta me espanta, alguma coisa deve estar acontecendo.
Há um exagero. Todo mundo percebe: como diz uma amiga minha, existe uma histeria coletiva em torno do celular, que, muito mais do que um meio de comunicação, virou um estilo de vida ou, se preferir, uma prótese indispensável ao nosso ir e vir. Bom, isso já tem alguns anos. O que ando observando ultimamente é o nascimento de uma histeria contra a histeria coletiva em torno do celular. Nesse dia do cinema, antes de ser abordada pela mulher, confesso que eu estava quase cedendo a essa histeria anti-histeria: estava de bode das redes sociais (verdade seja dita, sou do tipo que costuma pegar bode de tudo, até da minha própria casa de vez em quando, então as redes são só mais uma coisa que entram no pacote), tinha lido sobre a australiana com quase meio milhão de seguidores no Instagram que, cansada daquela atmosfera fake, resolveu apagar as próprias fotos, um amiga havia me mandado um texto falando que estamos todos emburrecendo com o uso do celular etc etc.
Mais tarde, já em casa, decidi não entrar em histeria alguma – nem na do uso, nem da do anti-uso. Alguns dias depois, para minha sorte, acabei entrevistando um psicólogo especialista em dependência digital e nossa conversa foi ótima para que eu reforçasse o caminho que faz sentido para mim. Basicamente, meu entrevistado defendeu que uma pessoa que passa, digamos, um total de 4 horas por dia olhando a tela do celular pode apresentar sinais de dependência, enquanto outra que passa o mesmo número de horas pode não apresentar. Onde está a diferença?
Ele respondeu que um bom parâmetro é observar se aquele uso está interrompendo nossas tarefas, atrapalhando nossa vida. “Bom, mas todo mundo já teve suas tarefas interrompidas pelo celular”, argumentei. Ele disse que de certo modo sim, o exagero está disseminado, mas que, às vezes, o limite que separa a dependência da não-dependência é sutil.
Fiquei pensando nisso.
É chover no molhado dizer os ganhos que a internet trouxe e traz às nossas vidas. Mas a internet ou o celular (apesar de serem um estilo de vida/prótese) são ferramentas cujos benefícios (e malefícios) decorrem do uso que fazemos delas. A gente se irrita com o nosso próprio celular ou com o celular dos outros quando estamos, na verdade, irritados com nós mesmos – ou com os outros. Cada vez mais, acho que há jeitos diferentes de se apropriar do celular e essas diferenças vão além do número de horas que a gente olha para a tela. Há vários modos possíveis de definirmos para nós mesmos qual o lugar que vamos ocupar nesses tempos conectados.
Somos uma pessoa que posta a vida mais ou menos como ela é e tudo bem ou somos aquela que vai se atrasar para o compromisso por tirar e editar 50 fotos? Somos aquela pessoa que se sente leve na hora de postar ou a que briga com a irmã menor até que ela tire uma foto boa, como admitiu a modelo australiana? Somos a que gosta de receber curtidas e se diverte com os comentários ou aquela que leva tudo muito a sério, fica infeliz quando não é curtida e coloca o próprio valor em cheque quando alguém discorda nos comentários? Entendemos que não somos escravos das mensagens e não precisamos responder tudo na hora ou damos ao apito do celular o poder de interromper até mesmo atividades que não gostaríamos de interromper por nada?
Somos a pessoa que entende que o namoro acabou ou a que vai ficar stalkeando o ex e a atual dele o dia todo, quando poderíamos estar fazendo qualquer coisa mais produtiva? Somos aquela pessoa que se diverte de verdade na praia, na balada ou no restaurante ou somos a triste pessoa que só está preocupada em mostrar que está lá? Aquele sorriso da foto ao lado do nosso marido é sincero ou é só pose? O que estávamos sentindo no momento do clique ao lado do nosso filho: que estava uma delícia brincar com ele e estar ali de verdade, e o clique foi apenas uma pausa na brincadeira, ou que o que importava era posar de mãe feliz para a câmera?
Sabemos escutar o outro que está do nosso lado ou nos isolamos das conversas olho no olho? Depois de terminar tudo o que queríamos fazer no celular, ficamos descendo a barra do Facebook infinitamente, com a cabeça e os olhos no piloto automático, ou encerramos aquela atividade quando queremos encerrar e vamos fazer outra coisa da vida? Lemos só notícias sensacionalistas, tragédias, fofocas e piadas ou sabemos aproveitar o tempo na rede para aprender e nos aprofundar em alguma coisa? Continuamos lendo livros? Temos uma conexão não só com a internet, mas com a vida?
Ficou claro para mim: naquele dia, do cinema, a mulher me causou má impressão por sua agitação e falta de educação, e não pelo uso do celular. Pelo uso que ela faz – ou estava fazendo naquele dia.
Fazendo muito ou pouco uso do celular, ainda temos o poder de escolha – quem somos, o que postamos, como nos relacionamos com aquela ferramenta. É claro que não é possível (pelo menos, para mim não é) ser equilibrado, sensato e moderado todos os dias: alguns exageros fazem parte até da rotina mais equilibrada. Em alguns momentos a gente está mais agitado, ansioso, inseguro, neurótico, e isso pode influenciar na maneira como lidamos com a tecnologia naquele instante ou mesmo naquela fase – e também na maneira como lidamos com situações que não passam pela tecnologia. Mas, no geral, se procuro seguir o tal do “caminho do meio” nos mais variados aspectos da minha vida, por que com o celular seria diferente?
Não é preciso ceder à histeria coletiva dos que se transformam com o uso do celular, como se a gente fosse refém dele, mas também não é necessário ceder à histeria anti-histeria. É preciso, na minha opinião, algo mais simples e, ao mesmo tempo, mais profundo: olhar para dentro de si, respirar fundo e decidir que escolhas queremos fazer naquele momento. Nossas experiências não serão interrompidas pelo celular se não quisermos. Nossas fotos não serão fakes se buscarmos autenticidade no que postamos. Nossos vínculos não serão prejudicados se soubermos quem somos, o que importa para nós e o que estamos fazendo. Não é preciso se tornar vítima ou escravo de aparelho nenhum. Vale mais desligar o piloto automático e afiar a consciência para, assim, aproveitar o celular como uma graça a mais da vida, e não como algo que, pelo contrário, tira a graça das coisas.