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A força do feminismo negro para promover mudanças

As pautas deste movimento avançaram, mas ainda há muito o que conquistar. Protagonistas dessas transformações avaliam o que passou e o que virá

Por Isabella Marinelli Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Anna Laura Moura Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 20 nov 2018, 16h00 - Publicado em 20 nov 2018, 12h48

O conceito de interseccionalidade indica as diversas opressões que um grupo pode sofrer de acordo com suas condições sociais e de identidade. No caso das mulheres negras, há pelo menos duas forças de repressão associadas, a do machismo e a do racismo. “Essa estrutura de preconceito as coloca como vítimas prioritárias de muitas violências, desde a doméstica até o abuso policial. São as que estão no front”, explica Carla Akotirene, mestre em estudos de gênero pela Universidade Federal da Bahia e autora de O Que É Interseccionalidade? (Letramento e Justificando). Ela ressalta no livro a importância de tornar mais plural a articulação do movimento feminista. “Não podemos esquecer que a marcação racial é determinante para a vivência dessas mulheres”, diz.

Interseccionalidade é um tema recente porque somente em meados da década de 1980 as pautas do feminismo negro começaram a ganhar espaço. Antes disso, já se discutiam direitos femininos, mas o conteúdo intelectual era produzido por mulheres brancas e tinha a visão delas. “Isso persiste e reflete nas nossas políticas públicas. Quando há alguma medida a ser tomada, busca-se a produção da academia, que ainda é excludente”, argumenta.

Atualmente, há um fator acrescentado ao mecanismo, desta vez beneficiando a multiplicidade das visões: a internet, que possibilitou o cyberativismo. A quarta onda do feminismo traz garotas cada vez mais jovens que se tornam vozes fortes na luta pela igualdade de direitos e combate ao racismo. Antes mesmo de chegarem às esferas do macro, elas geram revoluções na vida de suas seguidoras.

Através do espelho

No Instagram e Facebook, multiplicaram-se os grupos de troca de conhecimento sobre transição capilar, maquiagem para pele negra e amarrações de turbantes, por exemplo. Por meio da estética, vêm a afirmação da cultura negra e o apoio entre mulheres desse círculo, que passaram a se enxergar em ambientes antes reservados aos padrões de beleza restritos aos fios loiros e lisos. Prova disso é que as pesquisas sobre cabelos cacheados cresceram mais de 232% em 2017, segundo levantamento do Google.

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“Conhecíamos uma única narrativa de beleza, aquela contada por novelas, comerciais de xampu e capas de revistas, em que o cabelo bonito era o escovado. Foi graças à internet que pudemos descobrir outros caminhos”, conta a influenciadora digital Carla Lemos, do Rio de Janeiro. Há dez anos, ela escreve no Modices, site dedicado à moda, beleza e feminismo.

Em uma breve retrospectiva, Carla relembra suas maiores referências na adolescência, como as cantoras do Destiny’s Child, grupo ao qual pertencia Beyoncé, consideradas autênticas por ousarem no visual para se sentirem poderosas. O sentimento era de pertencimento. Enxergar – se em imagens de sucesso ou em posições importantes – na realidade e na ficção – faz parte da construção da autoestima. “Quando cercada somente de referenciais de beleza diferentes da sua, você passa a encarar as próprias características como adversárias da sua realização pessoal. Ver alguém semelhante sendo celebrada faz uma menina acreditar que pode se sentir bonita também.”

O movimento virtual acendeu a luz para o mercado. Cada vez mais, as marcas estão atentas às novas demandas e têm lançado produtos cosméticos voltados para esse público. “Embora algumas linhas de maquiagem já tivessem ampla gama de cores de base, aquelas que aprenderam a comunicar isso se destacaram”, acredita. O mesmo vale para o cabelo. “A indústria sempre lucrou com o ‘mito da transformação’ e agora vê que também pode faturar quando as mulheres descobrem o poder de se aceitar”, argumenta. “O caminho é longo, mas estamos na direção certa. Autoamor é um ato de resistência.”

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O poder de ressoar

Filha de mãe baiana e pai mineiro, Luz Ribeiro sabe o que é resistir. Nasceu no Jardim Souza, extremo sul de São Paulo, e estudou a vida toda em escola pública. Sentia–se sozinha e começou a escrever versos para descarregar a dureza do cotidiano. Mais tarde, passou a frequentar saraus até chegar ao slam, batalhas de poesia popular, trazido ao Brasil pela atriz-MC Roberta Estrela D’Alva, uma das vencedoras do Prêmio CLAUDIA deste ano. Em 2016, ganhou a competição brasileira e foi à Copa do Mundo de Slam, em Paris. “Há dez anos, quase não se viam meninas. No último nacional, tivemos quatro mulheres entre os cinco finalistas. O aumento de mulheres negras também é notável, o que trouxe temas pulsantes para as arenas”, relata. A visibilidade é a grande questão. “Ninguém, nem o slam, dá voz a alguém. As minorias já têm voz. O que mudou é que agora elas são ouvidas.”

O grito forte também se ouve na música, a exemplo da cantora carioca Iza. Aos 28 anos, ela furou os bloqueios raciais do entretenimento e se firmou como uma das mais promissoras cantoras da geração. Saída de um bairro de classe média baixa do Rio de Janeiro, largou a publicidade pela carreira artística. A força da mulher negra foi matéria-prima do single Dona de Mim, que já tem mais de 9 milhões de visualizações no YouTube. O álbum homônimo ainda lhe rendeu uma indicação ao Grammy Latino. “Eu me achava minoria por não ter referências e cresci querendo mudar isso”, diz. Credita o sucesso à verdade e à ancestralidade que transmite em suas canções. “O empoderamento que canto é o que eu sou. Observo quem convive comigo, como minha mãe e minhas tias.”

Desejo pelo novo

“Eu sou porque nós somos” era o lema de Marielle Franco, vereadora carioca assassinada em março deste ano em um crime que ainda não foi solucionado. Cria do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, ela era a voz das mulheres periféricas, mães e lésbicas que confiaram o voto a essa liderança firme nas eleições municipais de 2016. Em plenário, fazia questão de ser ouvida e respeitada. “O assassinato de uma parlamentar em pleno exercício é uma mensagem que não podemos aceitar. É preciso recusar a ideia de que lutar por dignidade no Brasil é perigoso”, alerta a médica Jurema Werneck, diretora da Anistia Internacional no Brasil. “A morte foi um mês depois do início da intervenção federal no Rio. Ela era relatora da comissão que fiscalizava a ação. Isso coloca em questão as alternativas de segurança que estão sendo propostas”, argumenta.

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Para Jurema, a onda de inconformismo diante do crime contribuiu para a eleição do dobro de mulheres negras para assembleias estaduais em relação ao pleito de 2014 – elas aumentaram de sete para 15. “O assassinato foi interpretado como uma tentativa de silenciamento e a postura de Marielle de se negar a ser interrompida despertou em outras mulheres. Elas se prontificaram a embarcar na mesma missão.” Chamadas de “sementes de Marielle”, Renata Souza, Mônica Francisco e Dani Monteiro, que trabalhavam como assessoras da vereadora, se elegeram deputadas estaduais; Talíria Petrone, colega de militância, como deputada federal. Todas tomarão posse no começo do ano que vem. Momentos após o resultado, nas redes sociais, Renata escreveu: “Nunca mais estaremos sozinhas nos espaços de poder”.

Para Bianca Santana, autora do livro Quando Me Descobri Negra (Sesi-SP), o empenho agora é em manter essas ativistas plenamente capazes de exercer seus trabalhos. “Quem matou Marielle não pode achar que essa ideia vai ser enterrada junto. E devemos pensar em como proteger essas mulheres da perversidade”, pondera. Ativista, Bianca participou da campanha eleitoral do candidato a deputado federal Douglas Belchior (Psol). “Posso afirmar que não existe uma premissa de igualdade na política brasileira. Se 54% da população é negra, por que não temos 54% de negros nas esferas de poder? E como vamos dar conta de um jogo que não foi criado para que participássemos?”, questiona ela. “Não teremos representatividade verdadeira enquanto o grupo que faz as regras for predominantemente homogêneo.” O desafio agora é conter o tsunami de intolerância e fazer do momento de crise uma oportunidade. “Quando mergulhamos na nossa história, encontramos um país construído de forma violenta. Analisar o contexto é essencial para atuar na estruturação de um futuro melhor”, acredita Bianca.

“Só quero trabalhar”

A advogada Valéria Lúcia dos Santos espera a conclusão da obra de seu escritório – pequeno e sem luxos, gosta de salientar –, no Rio de Janeiro. A carioca apareceu nas páginas do noticiário após ser algemada e presa em plena audiência por ordem de uma juíza quando se recusou a deixar a sala no 3º Juizado Especial Cível em Duque de Caxias (RJ). Os vídeos do momento viralizaram nas redes sociais. “Eu me senti completamente desamparada. O acolhimento só veio no dia seguinte, quando colegas da OAB me abraçaram”, conta. A organização, na época, qualificou o episódio como ilegal, e o presidente da sucursal do Rio, Felipe Santa Cruz, disse que toda a advocacia havia sido algemada junto com a colega. Valéria enfatiza que prefere relembrar a situação sem o filtro do racismo, embora admita que as pessoas o enxergaram claramente naquele episódio.

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O preconceito racial é velho conhecido. “Sofremos para entrar no mercado de trabalho. A sensação é de que precisamos provar que somos muito mais vezes capazes do que as pessoas brancas”, desabafa Valéria. “Até no sentido físico, nos fazem acreditar nisso. Existem lugares que pedem para que o cabelo natural seja alisado, por exemplo.” Ela deseja se especializar em casos de racismo. “Meu sonho é exercer minha profissão livremente”, diz.

Para as mulheres negras, o primeiro obstáculo na construção da carreira está na educação. Quem chega ao diploma já percorreu uma estrada tortuosa que tira a maioria das maratonistas da corrida. Segundo a pesquisa Estatísticas de Gênero, divulgada em março pelo IBGE, só 10% das mulheres negras concluem o ensino superior no Brasil. Depois, vem a dificuldade de penetrar no mercado e crescer na área escolhida. Entre as iniciativas mais modernas para reduzir as desigualdades no ambiente corporativo tradicional, estão os sistemas de cotas, as políticas de seleção mista (que exigem candidatos homens e mulheres) e os bancos de currículos sem distinção por gênero e sem foto.

Há também os empreendedores sociais que trabalham por produtos ou espaços de diversidade. É o caso de Monique Evelle, 24 anos. A baiana, incluída pela revista Forbes entre os 30 jovens com menos de 30 anos mais promissores do país, foi uma das idealizadoras do marketplace de roupas e acessórios Kumasi. A plataforma reunia produtores afrodescendentes de Salvador e oferecia apoio logístico, de marketing e de comunicação para potencializar as vendas. Após um hiato em 2018, ela voltará no próximo ano com extensão nacional. “Existem várias formas de combater as injustiças sociais, essa é a minha”, conta Monique.

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De outra parceria, desta vez com uma empresa de tecnologia baiana, sairão o Sagaz e o Sagaz Social, duas plataformas para conectar pessoas. A primeira é voltada para as empresas que querem melhorar a comunicação com os funcionários e reconhecer talentos internos. A segunda funcionará como uma rede social baseada em três pilares: espaços para ideias que ainda precisam de investidores ou de equipes, curadoria de vagas de emprego e conteúdo educativo. “Percebi que existe uma carência de aprendizado, mas quem precisa sustentar a família não tem tempo para se dedicar a cursos longos e presenciais”, justifica Monique. Todas as novidades chegarão via notificação, assim como no WhatsApp. O aplicativo será lançado até o começo de dezembro e terá acesso gratuito. “Será fácil de usar, e o usuário poderá selecionar seus interesses e marcar habilidades em uma ficha cadastral”, explica.

Monique trabalha para que a estagnação não seja uma constante na carreira das mulheres negras. “Com olhar atento, percebemos que algumas ficam dez anos na mesma empresa, e a única conquista é um posto de gerência, sem perspectiva de crescimento. A questão estrutural do preconceito de raça é latente. Algumas profissionais saem, outras tentam resistir nesses espaços”, argumenta. Até abril deste ano, o Brasil tinha apenas uma CEO negra em grandes empresas. Rachel Maia ficou nove anos à frente dos negócios nacionais da joalheria dinamarquesa Pandora. Ao deixar o cargo, retrocedemos à realidade de uma década atrás, sem outra representante. Em sua participação na cerimônia da 23ª edição do Prêmio CLAUDIA, em outubro, ela chamou a responsabilidade de mudar o cenário para si mesma e para a sociedade. “Não basta sentar na cadeira principal e delegar. Use a sua influência e reverbere. É preciso exercitar a sororidade”.

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