A barqueira que ajuda a construir uma nova economia na região Norte
Trânsito intenso de embarcações, ventos fortes e até piratas! Esses são alguns dos obstáculos que a paraense Rosecleia de Lima enfrenta pelos rios do Pará. CLAUDIA embarca ao lado dela para contar como vivem as mulheres da região.
Pelos rios do Pará
O cheirinho de café invade a casa às 5h30. Rosecleia Corrêa de Lima, 43 anos, toma o primeiro gole. Logo vai preparar o seu Gideão. O barco ganhou o nome do herói bíblico por sua bravura nas águas do Rio Guamá, que Rose percorre todos os dias. Ela verifica o óleo, tira o ar da bomba e espera os passageiros que sairão apressados de Boa Vista, povoado do município de Acará, para começar o dia em Belém.
São 6h20, a paraense dá a mão, ajuda cada um a saltar do ancoradouro de madeira para a embarcação, que balança um pouco. Nessa manhã, há 44 pagantes sentados nos bancos, que acomodam 60; a corrida custa 3 reais. Ela chega a movimentar até 4 mil pessoas por mês. Não há ondas fortes; em 45 minutos será possível atracar no Porto da Palha, no bairro de Cremação.
Acompanhar a rotina dessa morena bonita, de cabelos longos e fisionomia assemelhada à dos índios, é a melhor forma de conhecer as mulheres que fazem a vida econômica fluir no Norte. Seguir seu vai e vem é mais um capítulo da incursão de CLAUDIA pelo país.
O cenário começa a mudar
Sua infância foi em Boa Vista mesmo. Ela subia ao topo do açaizeiro com os pés atados pela peconha, cinto de fibras que a mãe fazia para Rose manter-se firme na árvore. Sua família vivia disso. Ainda hoje, o açaí, que nasce em igapós do estuário amazônico, é fonte de renda de milhares de nortistas. Rose deixou a colheita, virou doméstica e, mais tarde, capitã, com habilitação expedida pela Marinha. Tem oito anos de bordo.
Há poucas mulheres nesse ofício. A maior parte da mão de obra feminina está na agricultura. Muitas mulheres são colonas ligadas à soja, que, no Pará, saltará de 60 mil hectares plantados, da safra passada, para 110 mil na próxima. “Já as quilombolas, ribeirinhas e indígenas são donas do plantio de mandioca ou se dedicam à pesca, mas têm dificuldade de escoar a produção”, afirma Maria de Fátima Matos, vice-presidente do Conselho dos Direitos Humanos do Pará. Ela explica que as longas distâncias entre as cidades impedem o progresso dessas mulheres.
“Não há um programa público de etnodesenvolvimento, pautado na economia justa, e de incentivo à produção.” Elas acabam vendendo o que têm e se alojam nas periferias dos centros maiores, sem qualificação para o mercado. “As nortistas, no entanto, são talentosas para o trabalho informal, se viram com vendas ou como costureiras, cozinheiras, benzedeiras”, ressalva.
Esse espírito se traduz na abertura de negócios e na mudança do perfil de atividades. De 2001 a 2011, o número de empreendedoras orientadas pelo Sebrae quase dobrou, e foi o maior crescimento do país. De 302 mil, saltaram para 537 mil. Com Rose entre elas. O rendimento por hora feminino se aproximou do masculino: 7,8 reais ante 8,2 reais. É a menor diferença nacional, segundo o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (Raseam), da Secretaria de Políticas para as Mulheres.
Além do emprego direto, elas enxergam melhor as chances geradas às bordas da construção das hidrelétricas de Belo Monte, no Rio Xingu, no Pará, e de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, em Rondônia. Com custo de 30 bilhões de reais, só a de Belo Monte envolve 25 mil trabalhadores em Altamira. Eles precisam comer, morar, consumir.
O outro lado da moeda é o aumento da violência e de acidentes de trânsito, do impacto ambiental e do desalojamento de índios. Das detentas nos presídios do Norte, 47,9% se dedicavam à venda de drogas. Muitas haviam assumido a banca deixada pelo companheiro morto.
Mulheres sob ataque
Aos distúrbios urbanos, soma-se a violência de gênero. “No Acre, o incesto ainda é comum”, conta Margarete Lopes, doutora em teorias da crítica e da cultura e coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero na Amazônia. De novo, o isolamento geográfico impulsiona as causas. “Chove quatro meses por ano, fica difícil navegar e interagir com outras comunidades”, diz. “O viúvo toma a filha mais velha como mulher. O irmão e o padrasto fazem o mesmo com as meninas.”
Em 2013, no Hospital Mãe Luzia, única maternidade pública do Amapá, gestantes de 12 a 17 anos correspondiam a quase 50% dos partos. Muitas já com dois filhos. Para Margarete, a nortista, em geral, é a mais oprimida do país. “A origem está na mulher indígena, nunca respeitada como sujeito”, diz.
O histórico talvez explique o feminicídio. No Mapa da Violência de 2012, feito pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, cinco dos sete estados do Norte figuram entre os 15 mais sórdidos com as mulheres. O Pará está em quarto lugar entre os que matam mais.
Pelo Rio Guamá, nas bordas de Belém, a paraense faz até seis viagens por dia
Foto: Marcio Scavone
Desafio das águas
A Lancha do Corpo de Bombeiros, que resgata vítimas de afogamento, está perto do barco de Rose. O trânsito é intenso às 7 horas. Acidentes são comuns. A capitã desvia rapidamente de uma rabetinha (canoas pequenas com motor) que tenta se safar de bolos de mururé que enroscam no casco, atrapalhando a navegação.
Rose é hábil até sob tempestade ou ventania. “Só tenho medo mesmo dos ratos-dágua”, revela. Os piratas chegam em botes a motor, são ágeis ao roubar e chispam pelas águas, impunes. “Ninguém mais os denuncia”, diz. A Secretaria de Segurança Pública registrou só 19 ocorrências, de janeiro a abril deste ano.
Aprendeu a conduzir barcos com o segundo marido, Ivail Pastana Silva, que às vezes reveza o manete com ela embora ele se dedique mais ao segundo negócio da família, uma pequena venda de gêneros alimentícios. Até o final do ano, a dupla termina de pagar o artesão que fez o Gideão.“Administro tudo com meu marido. Sou dura com o dinheiro. Basta olhar e Ivail entende”, conta. Para quitar as prestações, poupou, adiou a compra de uma geladeira e as férias. E já traça planos: “Ter dois barcos. Quem sabe?”, diz.
Mãe aos 17 anos, Rose não contou com o parceiro para alimentar o primeiro bebê. “Tudo foi difícil.” As filhas, hoje com 26, 24 e 21 anos, se casaram. Duas deram à capitã duas netas. Sua prole difere do perfil nortista, marcado por famílias numerosas. A região tem a maior taxa de fecundidade, de 2,54 filhos por mulher (o Sudeste apresenta a menor, 1,76), e é a única com número de homens (8 274 milhões) ligeiramente superior ao de mulheres (8 225 milhões).
Estão ali o maior índice de partos em casa (4% ante 1%, a marca nacional) e as estatísticas mais alarmantes de morte materna. Dos óbitos, 73% são provocados por causas diretas, como complicações na gestação e no parto problemas evitáveis se a gestante passa pelas sete consultas pré-natais recomendadas pela Organização Mundial da Saúde.
Abraçadinha no forró
A capitã reduz a velocidade, manobra, encosta entre dezenas de barcos no Porto da Palha, onde uma feira animada vende pirarucu, roupas, ervas, pimentas. Alguns passageiros abraçam Rose na descida, ela volta para Boa Vista. Fã de autoajuda e da Bíblia, vai à igreja, mas não se considera evangélica clássica: “Não troco a bermuda por uma saia enorme de crente”, afirma.
À meia-noite, jantará. No dia seguinte, sábado, a manicure irá atendê-la antes da primeira rodada do barco. Ela se sente moderna e feliz com o marido. “O sexo é muito bom e isso é importante para mim.” O que não aceitaria? “Traição. Não tolero homem que engana a mulher.” O lazer será no Bar do Raul, à beira do igarapé. “Meu esposo e eu vamos dançar forró abraçadinhos.”