“Ainda muito criança fui espancada, molestada, abusada, humilhada”
A leitora Cinthia* teve uma infância instável com abusos psicológicos, físicos e sexuais. Ela morou na rua e tentou o suicídio
*Essa matéria aborda conteúdo delicado sobre depressão e suicídio. Se você precisa de ajuda, ligue 188
“Li um relato de abuso em CLAUDIA e reconheci a dor. A minha é igual. Minha mãe engravidou de um homem que nunca quis saber de mim. Ela é esquizofrênica e isso complicou bastante a nossa vida. Fui morar com a minha avó desde muito cedo. Ser filha de mãe solo tinha seu preço naquela época, e era altíssimo. Fui espancada, molestada, abusada e humilhada.
Todo esse mal foi causado por quem deveria me proteger e me amar, um tio. Minhas feridas não cicatrizam, elas sangram todos os dias. Sofro de transtorno depressivo maior com ideação suicida. Já tentei o suicídio. Fui casada e tenho duas filhas; uma tem 22 anos e é pessoa com deficiência, a outra tem 18 anos. Tenho 43 anos.
Os espancamentos aconteciam por motivos banais. Se eu olhava para ele, apanhava. Se eu ficava quieta num canto da casa, apanhava. Seu eu chamava minha avó de mãe, apanhava. Ele dizia: ‘Você não tem mãe nem pai, é filha de chocadeira’. Passei muito tempo tentando entender o significado daquelas palavras. Ele também falava: ‘Você é feia, ninguém nunca vai te amar. Você é burra. Se nem sua mãe te quis, imagina outras pessoas’. Depois de muito tempo ouvindo essas palavras, acabei acreditando. Hoje, sinto raiva quando escuto que sou bonita ou inteligente. Acho que estão tirando sarro de mim. Não me olho no espelho porque vejo uma aberração.
Depois que fui diagnosticada, engordei muito. As pessoas criticam muito meu corpo. Dizem que eu tenho que fechar a boca, criar vergonha na car, fazer exercícios. Mas ninguém procura saber o motivo da minha dor.
Quando eu tinha 9 anos, além dos abusos psicológicos e físicos, começaram os sexuais. Não tenho como descrever o que sentia. Era um misto de nojo, ódio, repugnância, medo e muita vergonha. Ele dizia que a culpa era minha, que eu era um demônio e precisava ser boazinha com ele nos estupros pra ser perdoada.
Eu criei coragem e contei para minha avó. Ela imediatamente disse que eu não poderia mais morar com ela, então arrumou uma casa de família onde eu trabalharia. Eu tinha 9 anos! Eu não sabia cozinhar pratos chiques, mas era o que os patrões estavam acostumados e queriam. Eu apanhava muito da mulher. Ela mirava na cabeça e no rosto. À noite, o patrão ia me apalpar e depois começou a me estuprar. Aguentei 1 ano nessa casa. Uma noite, o homem levou o filho com ele para me estuprar junto. Eu fugi em seguida. Andei por horas e acabei dormindo em uma casa em construção. Essa virou minha nova casa. Durante o dia, quando os pedreiros estavam lá, eu andava pela rua, procurava comida em lixeira, tentava achar sapatos, roupas. Deixei tudo que era meu na casa.
Nessa fase, apanhei dos meninos de rua. Eu não queria me juntar a eles nos roubos. Para me defender, tinha que bater de volta e me tornei extremamente violenta. Meu ódio era direcionado a todo mundo, até da minha mãe eu sentia raiva. Um dia, estava passando muito frio e dois cachorros vieram dormir comigo. Eles me esquentaram. Eu já amava animais, mas a partir desse dia passei a cuidar deles como meus protegidos. Quando eu ganhava comida, dividia com eles.
Depois de 2 anos morando na rua, conheci uma família que me deu abrigo. Eles me ensinaram muitas coisas boas. Sou muito grata a eles. Alguns anos depois, conheci um homem e tivemos uma filha. Quando ele viu que ela era uma pessoa com deficiência, colocou a gente para fora da casa dele. Foi um golpe duro, mas consegui me reerguer. Depois que minha avó morreu, caí em depressão. Bebi muito, tomei remédios. Foi assim que tive uma overdose e fiquei internada.
Por mais que eu tente, não consigo me libertar do meu passado. Em 2006, conheci um homem que me aceitou com minhas limitações e me ama. Eu passei a ser muito desconfiada depois que fui abusada, mas meu marido conseguiu, com muito sacrifício e paciência, ganhar minha confiança. Ele adotou minhas filhas e as ama.”
A partir de agora, CLAUDIA mantém esse canal aberto e oferece acolhimento para quem quiser libertar as palavras e as dores que elas carregam. Fale com CLAUDIA em falecomclaudia@abril.com.br.
*Nome trocado para preservar a identidade da entrevistada.