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Já parou para pensar no que dizem as músicas sertanejas?

"Vai namorar comigo, sim"? Acho que não, queridinho!

Por Júlia Warken
Atualizado em 20 jan 2020, 14h59 - Publicado em 3 Maio 2017, 15h05
A dupla Henrique e Juliano, do hit "Vidinha de Balada" (Henrique e Juliano/Divulgação)
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Precisamos falar sobre a romantização dos relacionamentos abusivos na música sertaneja contemporânea. Precisamos mesmo! Isso porque, recentemente, a temática está se multiplicando nas canções do gênero. O que é um problema sério, especialmente num país em que 1 em cada 5 mulheres já foi vítima de violência doméstica.

De início, vamos começar por uma letra que é, possivelmente a mais problemática desse cenário: “Ciumento Eu”, da dupla Henrique e Diego. O som virou hit, mas essa música vem sendo criticada até pelos fãs fiéis da dupla, como é possível ver em uma rápida análise nos comentários postados via YouTube.

Tem uma câmera no canto do seu quarto
Um gravador de som dentro do carro
E não me leve a mal
Se eu destravar seu celular com sua digital

Trecho da música Ciumento Eu, de Henrique e Diego
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Comentário deixado no clipe de “Ciumento Eu” (Reprodução/Youtube)

“Ciumento Eu” atribui o ciúme excessivo, a perseguição, a intolerância à individualidade e o controle total sobre a parceira como sendo ~provas de amor~. “Eu não sei dividir o doce / Ninguém entende o meu descontrole / Eu sou assim não é de hoje / É tudo por amor”.

Só que convenhamos, se o boy justifica descontrole com amor (exatamente como diz a letra), aí vai uma dica: isso se chama relacionamento abusivo. E é esse tipo de discurso que muitas mulheres ouvem ao apanhar dos companheiros. Definitivamente, não dá para tratar o assunto de maneira leviana.  

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A mesma dupla também é intérprete de outra letra problemática: “Senha do Celular”. Na canção, um cara desconfia da fidelidade da namorada e acaba confirmando a traição ao descobrir a senha do celular dela. Isso é o bastante para legitimar que, se a mulher se recusa a mostrar o celular ao namorado/marido, então é por que certamente ela está escondendo algo.

Se não deixa pegar o celular
É porque tá traindo
E tá mentindo
Alguma coisa tem

Se não deixa pegar o celular
É porque tá devendo
Me enganando
De papo com outro alguém

Trecho da música Senha do Celular, de Henrique e Diego

Ser enganado é algo péssimo e ninguém está defendendo que as mulheres podem ser infiéis e está tudo bem. Mas isso não significa que é OK invadir a privacidade do(a) companheiro(a). Essa é uma regra que vale para homens e mulheres – ou, ao menos, deveria valer.

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Essas duas letras cantadas por Henrique e Diego poderiam representar um problema pontual, mas elas não estão sozinhas na safra recente das músicas sertanejas. Na canção “Vidinha de Balada”, da dupla Henrique e Juliano, o abuso vem na forma do seguinte discurso: eu quero namorá-la e você não tem escolha. 

Desculpe a visita, só vim te falar
Tô afim de você e se não tiver “cê” vai ter que ficar
[…]
Vai namorar comigo sim
Vai por mim igual nós dois não tem
Se reclamar “cê” vai casar também

Trecho da música Vidinha de Balada, de Henrique e Juliano

Reflita por um segundo: e se essa letra fosse cantada por uma mulher? Ela CERTAMENTE seria tachada de louca, de carente, de desesperada… mas na voz de Henrique e Juliano, essas palavras são romance puro. Afinal, o senso comum diz que toda mulher quer embarcar num relacionamento, né? Que nossa existência gira em torno disso e é realmente muita sorte quando um cara vem nos ~salvar~ da “vidinha de balada”, como diz a música.

Somando-se aos exemplos acima, também tem o time dos caras que não conseguem se conformar com o término da relação. A começar por Marcos e Belutti, na canção “Então Foge”. Aqui, o protagonista da música não aceita quando a companheira diz que quer colocar um fim à relação.

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De início, o cara apenas duvida que a moça não o quer mais, mas a letra ganha um tom mais sombrio quando ele afirma que ela vai mudar de cidade ~apenas~ para fugir dele. Colega, convenhamos: se até você acredita que ela está FUGINDO, então é porque, de fato, essa mulher quer se ver livre de você. Apenas aceite.

Sua boca diz não quer
E meu ouvido diz duvido, duvido, duvido
[…]
Inventa que tá saindo desse relacionamento
Fala só pra não me dar moral que tá quase fazendo as malas
Que vai pra Curitiba, vai tentar a vida
E não ir embora seria errar de novo
Mas eu tô sabendo que você só quer fugir
Fugir, fugir de mim

Trecho da música Então Foge, de Marcos e Belutti

Já o hit “Casa Amarela”, de Guilherme e Santiago, poderia até ser uma continuação de “Então Foge”. Nele, a história se passa depois do fim de um relacionamento, quando o cara passa a perseguir sua ex.

Há 10 dias, ele vai até a casa da moça para espioná-la, pois está sofrendo e também está certo de que ela o traia quando os dois ainda estavam juntos. O clima é bem doentio, mas ganha contornos românticos (claro!), com direito a clipe protagonizado por Marcos Pasquim e Helena Ranaldi.

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E olha eu aqui, pela décima vez
Tô passando na frente da casa amarela
Se algum vizinho me denunciar, a culpa é dela
De ex-namorado agora eu tô virando suspeito

Olha o meu desespero
Tô fazendo amizade com um vigilante pra me explicar
Meu problema é amor, tô sofrendo
Eu não tô querendo roubar

Trecho da música Casa Amarela, de Guilherme e Santiago

A cereja do bolo é a amizade entre o cara e o vigilante, afinal, roubar não pode, mas perseguir a ex é um troço totalmente inocente. Nesse cenário, ninguém lê notícias, pelo jeito.

Isso porque, basta jogar no Google “ex-namorado mata” para encontrar milhares de resultados assustadores. Pode fazer o teste! E mais: todos os dias, cerca de 13 mulheres são assassinadas no Brasil. Desse total, 33,2% são mortas pelo companheiro ou ex-companheiro. Esses são dados do Mapa da Violência, divulgado em 2015.

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Aos 17 anos, Gracielli Degasperi Grandi entrou para essa estatística. O motivo? O ex-namorado não aceitou o término da relação. Quem também passou por uma terrível situação de violência doméstica foi Bárbara Hoelscher, de 25 anos. Só que ela não foi parar na lista das mulheres que são diariamente assassinadas por seus companheiros. Bárbara sobreviveu, apesar de ter tido 47% do corpo queimado pelo ex-namorado, durante uma discussão. Dayanne de Medeiros, de 22, também teve a “sorte” de sobreviver, mas o namorado dela acabou sendo morto pelo ex-marido, que atropelou ambos deliberadamente.

Leia mais: Ela teve o corpo incendiado pelo ex-namorado e conta sua história

Domestic violence
(Halfpoint/ThinkStock)

Essas são as histórias de três mulheres, mas a elas somam-se MUITAS outras. Isso sem falar em todas aquelas que não ganham espaço nos jornais, afinal, a violência doméstica é um crime geralmente silencioso.

No início de 2017, com a repercussão da agressão sofrida por Emilly Araújo, no BBB17, milhares de mulheres aderiram à hashtag #meurelacionamentoabusivo e abriram o jogo sobre os abusos que sofreram em antigos relacionamentos. Para variar, muita gente chocou-se ao tomar conhecimento sobre a dimensão do problema, como aconteceu na época do #meuprimeiroassédio. Isso porque a violência contra a mulher (seja física, psicológica, sexual etc.) é constantemente normalizada na nossa sociedade.

Canções como essas mostradas aqui são uma realidade que não surgiu ontem, mas a gente não pode acreditar que “o mundo sempre foi assim e nunca houve problema”. A cada 3 mulheres assassinadas no Brasil, 1 é vítima de relacionamento abusivo.

Será que a gente pode se dar ao luxo de acreditar que isso não faz parte de uma cultura que trata a violência doméstica como algo sem importância (afinal, “em briga de marido e mulher não se mete a colher”) e, ainda por cima, romantiza relacionamentos abusivos? Definitivamente não.

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