A Feira do Livro invade a Praça Charles Miller para celebrar a literatura
Depois de mudanças no mercado editorial, o evento surge como reflexo de um desejo coletivo para aproximar as pessoas dos livros de forma pública e gratuita
Duvido que você tenha passado a pandemia sem a companhia de um livro (ou vários). Romances, dramas, suspenses, ficção científica, quadrinhos, não importa o formato ou o conteúdo: eles viraram companhia para muita gente, inclusive retomando aquele ótimo hábito de leitura na rotina. Com a vida lá fora tomando alguma forma, mesmo que ainda meio torta, a vontade de se reunir com outros leitores era quase uma consequência desse movimento. Prova disso é a super aceitação de editoras e escritores à Feira do Livro, que, entre 8 e 12 de junho, invade a Praça Charles Miller, em São Paulo, para celebrar e fomentar a literatura.
Idealizada pelo editor Paulo Werneck e pelo arquiteto Álvaro Razuk, o evento literário propõe uma troca simbólica, de carros por livros, com barraquinhas tomando conta do estacionamento em frente ao Estádio do Pacaembu. A entrada é gratuita e você poderá ver de perto títulos publicados por mais de 120 editoras e mesas de debates com autores que incluem Djamila Ribeiro, Ailton Krenak, Maria Homem, Mia Couto e Carla Madeira. “Nós recebemos poucos ‘nãos’ e isso é uma coisa rara na vida de um curador”, brinca Paulo, “foram muitas adversidades [nos últimos anos], parecia um desejo geral de fazer isso acontecer. A ideia não é original, mas me pergunto porque não fizemos isso antes. Por isso a adesão tão forte”.
A iniciativa, feita pela Associação Quatro Cinco Um e pela Maré Produções, tem uma curadoria pensada na diversidade – e não digo nem só sobre gênero e raça. “Não queríamos que a feira tivesse uma lógica de exclusividade, privilégio. Era importante termos uma certa isonomia nos expositores, com editoras de portes e perfis culturais dos mais variados.” Paulo destaca a presença da ISA, Instituto Socioambiental que possui um selo editorial para fomentar a produção literária e artística de povos originários no Brasil, e da Tabla, editora focada em publicações de autores do Oriente Médio e do Norte da África. Claro que, por lá, você também irá encontrar nomes mais conhecidos, como Companhia das Letras, Senac, Todavia, Fósforo, Ubu, Intrínseca e mais (e até algumas livrarias importantes para a cidade).
E nada disso faria sentido sem uma organização do local também pensada por um viés de aproximação entre leitores-rua-editores-autores. “A ideia principal sempre foi fazer algo público, gratuito, com acesso: tirar os carros e dar espaço aos pedestres”, aponta Álvaro Razuk, responsável pela elaboração arquitetônica do evento. Sua expertise em Bienais e exposições de arte trouxe o olhar acolhedor e logístico para a ideia. “O espaço em si é um recinto arquitetônico, com total vocação para feiras e atividades culturais. Foi natural projetar essa cidadela: você chega pela parte mais baixa ou pelas escadarias laterais e já encontra conjuntos de tendas distribuídas, espaços de encontro, lugares de alimentação e banheiros.”
Tudo isso, segundo Álvaro, convida a população que não necessariamente é do círculo editorial ou literário a se sentir parte disso. “Museus e feiras sempre têm aquele impasse para você entrar. Muitas pessoas não frequentam esses lugares por conta disso [da arquitetura que se impõe no lugar de acolher].” Esse convite à aproximação teve apoio da Prefeitura e do Governo de São Paulo, com apoios institucionais importantes não só para colocar o evento no calendário oficial da cidade – uma segunda edição já é um sonho quase concreto –, mas também para ativar outros pontos culturais, como o Museu do Futebol e o Museu da Língua Portuguesa.
Tamanho evento é também uma forma de comemorar os cinco anos bastante fortuitos da Quatro Cinco Um, publicação focada no universo literário da qual Paulo Werneck é diretor de redação. “Tudo no Brasil mudou nesses cinco anos, e numa visão mais ampla que a cultura propriamente dita. Quem gosta de ler, estudar, trabalha com jornalismo e arte passou a enfrentar uma perseguição institucional. O livro, portanto, se tornou uma plataforma de resistência muito forte: autores se posicionaram, leitores usaram os títulos como caixa de ressonância do pensamento”, pondera. Para ele, em um momento tão delicado tal qual vivemos no país hoje, esse contato com a literatura foi crucial. “O livro tem um poder forte de transformação de pessoas e da sociedade, por que não pode também transformar a cidade?”, questiona.
Dessa equação de pessoas, cultura e espaço público nascem trocas reais de leituras que já foram e das que estão por vir. E ainda instigam o pensamento por meio dos debates e das ações locais. Fique de olho no projeto Ocupação Feminina, coordenado por escritoras na escadaria da praça, batizada de Patrícia Galvão. O chamado, no domingo, às 11h, é para todas as autoras brasileiras se reunirem ali para produzir uma imagem a ser registrada pela fotógrafa Mariana Vieira. Nos vemos lá?