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Coluna da jornalista e psicóloga Patrícia Zaidan: atualidades, feminismo, direitos humanos
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Inspirados no ministro do TSE, roraimenses podem bater à vontade

Basta dizerem – como Admar Gonzaga, agressor da sua mulher, Élida – que são violentos só “no calor dos fatos”

Por Patrícia Zaidan Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 27 jun 2017, 18h17 - Publicado em 26 jun 2017, 18h44

Quem se importa com a vida de Élida Souza Matos? Quem se interessa pelas mulheres de Roraima, o campeão brasileiro de feminicídio? A dura realidade das cidadãs que vivem no Estado  foi revelada pela Human Rights Watch, organização internacional de defesa dos direitos humanos, em São Paulo, na quarta-feira (21/6). Um dia antes de Élida vencer a humilhação e ir até a 1ª Delegacia de Polícia, em Brasília, para denunciar o marido, Admar Gonzaga, ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que — ela conta — feriu seu olho e massacrou sua autoestima com a estúpida ofensa: “Você não serve nem para pano de chão”.

Por que os dois episódios se entrelaçam e carregam tanta semelhança? Eles apontam o cheiro da impunidade como forma de aumentar o sangue que empapa o país todos os dias.

A taxa de homicídio em Roraima cresceu 139% entre 2010 e 2015, atingindo 11,4 mortes para cada 100 mil mulheres – algo terrivelmente superior à média nacional, 4,4. Não que a taxa brasileira seja flor que se cheire. Ela nos aproxima de Honduras e El Salvador – países sem instrumentos competentes para combater a violência doméstica – e nos distancia da vizinha Argentina, onde a taxa é de uma assassinada para cada 100 mil mulheres. Nenhuma a menos, é esse o ideal que devemos perseguir.

Em Roraima existe apenas uma Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM), que tem de acolher todas as denúncias de violência doméstica cometidas contra qualquer das 255 mil roraimenses. A única delegacia – como quase a totalidade das DEAMs do país – não funciona nos momentos graves, quando o bicho pega e o homem bate: à noite e nos finais de semana. O número de corpos femininos na capital Boa Vista, nas ruelas das cidades pequenas, na zona rural e nos rincões perdidos ainda não foi suficiente para que as autoridades aprendam a lidar com esse tipo de crime.

O relatório da Human Rights, intitulado Um dia Vou Te Matar, mostra que em Roraima a resposta do Estado “é decepcionante”, conforme declarou César Muñoz Acebes, pesquisador-sênior da organização, que vasculhou 31 casos do estado. A primeira constatação: “Os agentes policiais não são treinados para atender violência doméstica”. César atribui a decepção das mulheres à omissão e à negligência do sistema – que vai de policiais e legista a promotores e juízes. Segundo o pesquisador, a autoridade policial muitas vezes se recusa a fazer o Boletim de Ocorrência. Quando o faz, registra um resumo do caso em ralas linhas. Não ouve a testemunha que está acompanhando a vítima e diz que mais tarde chamará a agredida de volta e colherá seu depoimento em detalhes. Não chama. E se telefona, não encontra a mulher – ela já morreu ou não tem mais aquele celular.

A realidade de Roraima é uma das mais letais do mundo também porque os raros inquéritos instaurados são falhos e acabam arquivados. Na esfera da Justiça, o tiro contra a Lei Maria da Penha é disparado pela inércia ou lentidão. As medidas protetivas – um avanço criado por esse instrumento legal – demoram a ser assinadas e, uma vez expedidas pelo magistrado, não têm seu cumprimento fiscalizado. Os agressores acham isso a sopa no mel. O mamão com açúcar no qual se lambuzam antes de voltar a matar.

Maria Laura Canineu, diretora da organização no Brasil, não poderia ser mais certeira na análise. Naquela manhã de quarta-feira, ao abrir a reunião em que desnudou Roraima, ela chamou a atenção para o sórdido momento da política nacional. “Por tudo o que estamos vendo, o país corre sério risco de retrocessos na área de direitos humanos”, afirmou.

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O caso Admar Gonzaga é um sintoma agudo desse retrocesso. O ministro se tornou conhecido ao chegar ao Tribunal Superior Eleitoral como um aliado do presidente da República, posto ali na alta corte para garantir a permanência de Michel Temer no poder. Missão que cumpriu rigorosamente. A única frase de destaque proferida pelo destemperado-em-casa foi dirigida ao relator do processo que cassaria a chapa Dilma-Temer. A Herman Benjamin, Gonzaga disse: “Não adianta ficar fazendo discurso para a plateia e constranger um colega.” Gonzaga, quem constrange o país é o senhor. Quem joga para a plateia de violentos de toda a nação, quem inspira os agressores de Roraima a continuar sendo machistas, sexistas, misóginos e bárbaros com as mulheres é o senhor, ministro.

Veja só o desserviço prestado à ordem pública: Na tentativa de limpar a lambança e abafar a denúncia, o ministro chamou  o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay, um dos honorários mais caros do Brasil. E aí aconteceu o clássico: o homem subjuga mais uma vez a sua presa. Faz ela engolir o choro e voltar com ele à delegacia para desmentir-se. Tem de ir e confessar que é desequilibrada. Admitir que acusou injustamente o marido. Pior: tem de passar o vexame ensaiado pelo advogado e assumir que o “desentendimento” ocorreu sob “exasperação de ambos os lados”, e que a briga, a pancada e o pano de chão não passaram de pequena rusga embalada “no calor dos fatos”. Nunca vi surra ocorrer longe da quentura dos ânimos. Jamais vi uma mulher fazer exame de corpo de delito sem que tenha sido agredida, como no caso de Élida.

Pedem, Kakay e seu cliente-ministro, que o caso seja arquivado, já que a vítima se retratou. Gonzaga chegou a justificar sua atitude como uma reação à “crise de ciúme” dela.  E o advogado Kakay parece ignorar (junto com seu ilustre contratante) que, desde 2006, com a entrada em vigor da Lei Maria da Penha, briga de marido e mulher deixou de ser coisinha de casa. Não tem essa de “âmbito familiar” se a discussão acaba em ofensa moral e olho machucado. Isso virou assunto da sociedade. Passível de apuração, julgamento e responsabilização.

Em geral, uma mulher cria coragem e vai à delegacia (muitas vezes sujeitando-se ao escárnio de policiais despreparados) só depois de sofrer muitas agressões e ofensas de variados calibres. Imaginem o que foi para Élida romper os limites da mansão no Lago Sul, onde vive com Admar, entrar no carro da PM (como relata o site Metrópoles), e ir à delegacia. Mesmo de cabeça quente, ela sabia o quanto seria pressionada pelo marido, pela instituição que ele representa e até pelo poder da República, a quem Gonzaga serviu. Assim, esse não é simplesmente mais um caso de violência doméstica. Fiquemos atentos.

Com a retratação, o ministro aguarda o arquivamento da denúncia. Não é isso que esperamos. A legislação estabelece que o arquivamento só é possível após a vítima desistir da queixa em audiência, perante o juiz, e depois de ouvido o Ministério Público. Como Admar Gonzaga ganhou foro privilegiado ao ser empossado no TSE no último 27 de abril, a audiência terá de ser conduzida por um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e após o manifesto da Procuradoria-Geral da República.

Taise, em seu depoimento à organização Human Rights Watch (Reprodução/Reprodução)

Como estará Élida hoje? Que sentimentos lhe ocorrem? Vê-se sozinha e ameaçada? Fui rever o depoimento de Taise Campos, gravado pela Human Rights Watch. Da declaração dela saiu o título do relatório. Trata-se de uma história parecida com a de milhares e milhares de brasileiras. As agressões começam brandas, com ataques verbais e psicológicos… logo evoluem para tapas, socos, pontapés. Taise conta que ouviu do agressor a ameaça: “Você não é blindada, a qualquer hora você pode levar um tiro. Podem passar 10, 15, 20 anos. Um dia eu vou te matar.”

Ninguém merece dormir ao lado da ameaça. Roraima tem que dar conta da integridade de todas as Taises; Brasília deve apurar urgentemente o caso de Élida. Do contrário, as autoridades vão responder pelo risco de morte a que ambas estão expostas.

Confira aqui o relatório completo.

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