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Juliana Borges é escritora, pisciana, antipunitivista, fã de Beyoncé, Miles Davis, Nina Simone e Rolling Stones. Quer ser antropóloga um dia. É autora do livro “Encarceramento em massa”, da Coleção Feminismos Plurais.
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Permita-se viver “o nada” na quarentena sem culpa

O 3º capítulo do "Diário De Uma Quarentener" é um convite perfeito para curtir o ócio sem culpa

Por Juliana Borges
Atualizado em 4 abr 2020, 18h04 - Publicado em 3 abr 2020, 17h49

São Paulo, 03 de abril de 2020.

​E, hoje, completo 20 dias de quarentena. Ao despertar, e perceber a segunda dezena, eu logo me recordei de quando a grande discussão nas redes sociais era se o ano de 2020 representaria o fim ou o início de uma década. Os debates foram intensos e dividiram torcidas. No meu misticismo pisciano, eu defendia a ideia de recomeço. Não porque eu goste apenas do novo, mas principalmente porque para recomeçar é sempre necessária profunda reflexão, significa termos de olhar e aceitar o mergulho em nós mesmas. E isso é sempre bom, se a gente fizer do modo mais tranquilo possível.

​Este pode ser um dos problemas de muitas críticas a uma demanda pelo excesso de produtividade neste momento que o mundo todo atravessa. Muitos de nós está em casa, muito mais do que o previsto pelas empresas de TV a cabo, telefonia e Internet, muito mais do que o Facebook, o Instagram e o Twitter poderiam desejar – me desculpem pela falta de redes sociais mais novas e juvenis, mas eu sou do tempo que o Icq e o Orkut eram as grandes novidades da sociabilidade de rede – e vivemos sob uma tempestade de lives, aquele seu amigo sumido do Facebook voltou e posta a cada 12 minutos algum meme ou notícia catastrófica. E, quando você entra no instagram, aquela sua amiga gatíssima está falando sobre skincare/meditação e como-ela-está-passando-por-tudo-isso-serenamente.

​Lá pelo décimo dia de quarentena, eu ainda buscava entender o que acontecia. E eu caí em uma imensa ansiedade que perturbou madrugadas. A insônia já é uma companheira de tempos, mas algo de diferente tomava o peito. Uma angústia tremenda. Por que eu não estava escrevendo todos os dias? Por que eu não estava dando conta de terminar aquele artigo encomendado – que vai sim precisar de mais prazo? Por que eu não estava conseguindo me entregar nem ao processo de meditação dinâmica do Osho? E eu sentia uma imensa saudade de minha mãe. Por incrível que pareça, foi meu ex que me salvou em uma madrugada. Estamos em uma diferença de 5h de fuso-horário, o que me beneficia, já que ele está sempre tomando café quando eu estou no ápice insone. Foi preciso xingar tudo o que queria e dançar uma playlist de 2 horas inteiras, mas consegui dormir – não sei se por estar mais leve ou por estar exausta.

​O fato é que eu percebi que a produtividade excessiva demandada nessa quarentena era um aprisionador e que o ócio podia ser tão libertador e importante quanto para a nossa saúde mental. E que tudo bem sentir medo diante deste desconhecido tão implacável.

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​Pode ser que sentir medo e nos perceber vulneráveis seja importante para darmos conta daquela reflexão de recomeço que eu apontei lá no início do texto. Essa percepção do medo e esse deixar levar no ócio podem ser essenciais para a gente conseguir dar conta de fortalecer outras pontas necessárias neste processo. Acho que foi justamente perceber a mim mesma nisso tudo e me abrir aos meus medos que diminuiu parte da minha ansiedade – dissipá-la, ainda, não é uma possibilidade, infelizmente.

​E sobre como pensar o ócio, me interessa o trabalho do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em seu livro sobre a “sociedade do cansaço”, uma sociedade na qual o desempenho constante é demandado de nós. Em um dos trechos, Han fala sobre a “pressão do desempenho”, como um disparador da depressão e esgotamento do homem pós-moderno. Somos excessivamente estimulados, impulsionados a sermos multitarefas, o que interfere, ou mesmo destrói, nosso necessário processo contemplativo e de criação. A “hiperatenção” nos dispersa e se traduz em uma angústia e impaciência ao tédio profundo “que não deixa de ser importante para um processo criativo”. Reler este trecho fez todo sentido, principalmente quando a gente pensa o quanto é importante um processo de escuta que, por sua vez, é tão necessária para a percepção de nós e do entorno. Quando o filósofo fala de tédio, ele não está falando da ideia amplamente difundida do tédio como aborrecimento ou desgosto sem sentido. Ao falar do “tédio profundo”, Byung-Chul Han está, bem a grosso modo, falando sobre um estado contemplativo denso e que nos propicie o criar e não se perder na repetição inquietante cotidiana, um tédio que nos impulsione a buscar outros caminhos e a ter outras e novas ideias. Como exemplo, ele fala da dança que “representa um movimento totalmente distinto. Só o homem pode dançar. Possivelmente no andar é tomado por um profundo tédio, de tal modo que por essa crise o tédio transponha o passo do correr para o passo da dança. Comparada com o andar linear, reto, a dança, com seus movimentos revoluteantes, é um luxo que foge totalmente do princípio do desempenho.”

​O que quero dizer com tudo isso é para que não nos cobremos em demasia. As milhares de informações diárias, que exigem nossa super atenção, que exigem que nós não fiquemos paradas estão, na verdade, sendo responsáveis pela nossa paralisia. Talvez, o lance seja alimentar a tolerância ao nosso tédio, de tal modo que ele nos aponte o movimento seguinte. Sem dúvida, é importante que não nos percamos em tédio crônico, existente se permanecemos na superficialidade dos acontecimentos e não tomamos consciência da realidade que nos rodeia. Quando eu falo de ócio e tédio profundo aqui, não estou, de modo algum, defendendo alienação da realidade. Pelo contrário. Mas apenas de não acharmos que precisamos checar o instagram a cada 30 minutos, porque não é isso que nos informa, nem é isso que nos desaliena.

​Eu só consegui voltar a escrever e a ter prazer nisso quando me permiti um profundo tédio e ócio criativo. Foi preciso a explosão, seguida de alguns dias em profunda contemplação, com uma bela dose de ajuda do ex, para que eu percebesse que eu até poderia pensar em livros que eu gostaria de ler, mas que eu não precisaria lê-los como em uma maratona, mas no tempo que eles e eu nos permitisse; que eu não precisaria escrever 2.000 palavras por dia para demonstrar a mim mesma que eu podia ou que eu sou mesma uma escritora – que é exatamente o que Byung-Chun-Han, a partir da citação do sociólogo francês Alain Ehrenberg, nos chama atenção de nos cansarmos pela pressão de sermos nós mesmos. Mas um “nós mesmos” absolutamente afundado em demasiados estímulos, em uma busca de pretensa realização do que nos disseram que é realizar-se e não o contrário.

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​Então, assim, vamos combinar aqui: nada de se cobrar. Nada de achar que você precisa assistir as três mil setecentas e oitenta e nove lives, que você precisa curtir aquela postagem da sua amiga – adoro o meme com a foto do filósofo Zygmunt Baumann ironizando quem acha que curtida é sinal de amor e atenção –, nada de achar que todos os dias você precisa cumprir mil e uma tarefas, que você precisa ser escritora, jornalista, atriz e artista plástica, fazer faxina em toda a casa e mais mil e uma coisas. Me parece que, em uma sociedade na qual cada vez mais somos empresa, líderes e gestores de nós mesmos e na qual tanta informação é despejada em nós, exercer o ócio criativo é um ato de desobediência civil, é um ato para que a gente não superaqueça e pife, literalmente. É um ato para a gente conseguir parar de andar inquietos e em círculos e, talvez, consiga produzir dança mais para frente.

Juliana Borges é escritora, pisciana, antipunitivista, fã de Beyoncé, Miles Davis, Nina Simone e Rolling Stones. Quer ser antropóloga um dia. É autora do livro “Encarceramento em massa”, da Coleção Feminismos Plurais.

Acompanhe o “Diário De Uma Quarentener”:

02/04 – O manual de sobrevivência de uma quarentener

01/04 – A rotina do isolamento de Juliana Borges no “Diário De Uma Quarentener”

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