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Juliana Borges é escritora, pisciana, antipunitivista, fã de Beyoncé, Miles Davis, Nina Simone e Rolling Stones. Quer ser antropóloga um dia. É autora do livro “Encarceramento em massa”, da Coleção Feminismos Plurais.
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Pandemia e racismo

Conforme levantamento, “em duas semanas, a quantidade de pessoas negras que morrem por covid-19 no Brasil quintuplicou”

Por Juliana Borges
Atualizado em 8 Maio 2020, 21h06 - Publicado em 8 Maio 2020, 21h04

Uma das coisas que temos aprendido nessa pandemia é a importância da ciência na construção do bem-estar das sociedades. Infelizmente, temos vivido uma escalada, cada vez mais intensificada, de descrença no saber científico. Muitas podem ser as raízes desse afastamento, como eu prefiro denominar, entre ciência e as camadas mais populares da sociedade. E isso pode ser uma pauta boa para conversarmos aqui.

O fato é que a ciência tem demonstrado sua importância de modo eficaz nessa pandemia. E, veja, quando eu falo em ciência, não estou falando só daquela ideia de cientista como apenas os que produzem saber de “jaleco branco”, ou seja, os colegas de biomédicas ou tecnológicas. Importante pontuar que toda disciplina (vou usar esse nome, apesar de odiar a ideia de “disciplinariedade”), toda área do saber acadêmico, tem método científico. Passando pelas biomédicas, exatas e humanidades. Um bom cientista social, e o nome não é por acaso, lança mão de métodos científicos apurados, advindos de ampla tradição de produção de saber, para buscar compreender a sociedade e seus fenômenos. E, assim como nas biomédicas, esses métodos contêm observação, objeto de estudo, levantamento de dados, tabulação de dados, para daí realizar leitura da sociedade. Então, que fique explícito: se há pesquisa, há saber e produção científica. E as leituras e pesquisas sendo realizadas, em todas as áreas do saber, têm sido importantes para que entendamos o que estamos passando e projetar os efeitos disso.

Essa introdução é importante porque, geralmente, buscam questionar a produção científica com a famosa opinião, principalmente se essa produção científica se encontra no campo das humanidades. Essa é uma área que, historicamente, enfrenta discussões sobre ética, moral, política, comportamento. E com um olhar crítico, desconfiado sobre os fenômenos sociais – o que não significa, de modo algum, desrespeito ao que se estuda. Aliás, quem assim age, não faz boa ciência. Mas eu amo um meme que viralizou há pouco tempo de que “não se rebate saber científico com opinião”. O que não significa que você deva calar sua opinião. Pelo contrário. Mas que reafirma que há método para se chegar a algumas reflexões e resultados. Podemos achar muitas coisas e podemos sim questionar resultados científicos. Desde que também lancemos mão do método científico para tal.

Geralmente, quando falamos de racismo no Brasil, há uma chuva de opiniões. Diversos “eu acho que”. Mesmo que dados, coletados sob rigor e método científico, demonstrem as imensas desigualdades brasileiras e que não são marcadas pela questão racial por coincidência, mas como fruto direto das explorações baseadas em hierarquias raciais no país. Temos uma pirâmide racial no país que tem, quase, funcionado como um sistema de castas. Indígenas e população negra brasileira estão na base dessa pirâmide, com as piores colocações profissionais, piores salários, piores condições de infraestrutura urbana básica, sem acesso à terra, saúde de qualidade e vivendo em territórios altamente monitorados por uma lógica ofensiva e militarizada de controle. Mesmo em momentos que nós tivemos grandes avanços econômicos, mesmo quando falávamos – equivocadamente – que havíamos nos transformado em um país de classe média, a pirâmide racial permanecia intacta. E isso impacta no avanço da pandemia no país.

Como já afirmei antes, a pandemia não é democrática. Se, por um lado, o novo coronavírus tenha entrado no país pelas classes média e alta, as primeiras vítimas fatais foram pobres. Há o caso que ganhou os jornais da trabalhadora doméstica, uma mulher negra periférica, que morreu de covid-19 adquirida de seus patrões, que haviam retornado de viagem de férias da Itália.

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Em recente levantamento realizado pela Agência Pública, isso fica evidente. Conforme aponta o resultado, “em duas semanas, a quantidade de pessoas negras que morrem por covid-19 no Brasil quintuplicou”. E, piora, “a quantidade de brasileiros negros hospitalizados por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), causada por coronavírus, aumentou 5, 5 vezes”. Em contraponto, o número de pacientes brancos não acompanhou esse aumento exponencial, tendo aumento em 3 vezes. A letalidade também é bem diferente. A cada três negros hospitalizados por SRAG, um acaba morrendo. Enquanto que entre brancos, essa proporção é de 1 para 4.

A cidade de São Paulo, um dos principais epicentros do país, apresenta dados que corroboram essas desigualdades sócio raciais. Segundo o mesmo levantamento, “dos dez bairros com maior número absoluto de mortes causadas pelo coronavírus, oito têm mais negros que a média de São Paulo”. Um exemplo apontado no levantamento é brutal: o bairro da Brasilândia, com maior número absoluto de mortes, 103, tem cerca de 50% de sua população composta por negros. No bairro de Moema, do centro expandido da cidade, na zona sul, em com menos de 6% de população negra em sua composição de moradores, foram 26 mortes. O meu bairro, Jardim Ângela, que tem a maior porcentagem de negros de toda a cidade, viu nas últimas semanas o seu número de mortes em decorrência do vírus triplicarem. Segundo meu vizinho, o Hospital do M Boi Mirim “é a própria visão do inferno”.

E essas pessoas não estão desobedecendo a quarentena simplesmente porque querem. Em realidade, segundo levantamento da própria Prefeitura, o bairro que menos obedecia a quarentena é o Alto da Boa Vista, na zona sul da cidade, e que é de classe média. Ou seja, estamos vendo nessa pandemia os impactos diretos da omissão ativa do Estado em garantir equipamentos públicos de saúde e demais serviços públicos nas regiões periféricas, nas comunidades e favelas. E essa omissão acontece, de modo a que ninguém se importe, porque esses territórios são compostos por etnias e cores muito bem expressas. A despeito do discurso de que é difícil saber quem é negro no país, a gente percebe a falácia quando vemos o número de pessoas negras mortas pelas polícias, o número de mulheres negras que sofrem violência obstétrica e que são vítimas de femincídio no país. Não podemos mais fechar os olhos sobre isso.

Se essa pandemia escancara nossos problemas e desigualdades, nos fazendo acordar diante do falacioso discurso de país da democracia racial, precisamos, então, pensar no que faremos com isso. Se simplesmente lamentaremos ou se faremos algo para equilibrar essa equação. Um bom começo é demandarmos urgente que sejam construídos hospitais de campanha e ampliados os leitos de UTI nas periferias, que as polícias e guardas municipais sejam agentes de cidadania, de conscientização para a necessidade de ficar em casa, ao invés de seguirem agentes de repressão. Que tenhamos ações ofensivas de assistência social, garantia de apoios financeiros para que essas pessoas possam cumprir a quarentena – já que pesquisas também mostram que as pessoas entendem a importância da medida.

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A questão é, então, se vamos, de fato, enfrentar essa outra epidemia que nos assola desde que essas terras passaram a ser chamadas de Brasil: a do racismo.

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