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Juliana Borges é escritora, pisciana, antipunitivista, fã de Beyoncé, Miles Davis, Nina Simone e Rolling Stones. Quer ser antropóloga um dia. É autora do livro “Encarceramento em massa”, da Coleção Feminismos Plurais.
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Mulheres negras são mais atacadas nas redes sociais

Ataques gratuitos, de quem que só tem interesse em tentar comprovar alguma tese para se sentirem confortáveis com o seu racismo, não podem ser tolerados

Por Juliana Borges
Atualizado em 7 jun 2020, 15h21 - Publicado em 7 jun 2020, 09h30

São Paulo, 06 de junho de 2020

Na última semana, houve um acontecimento que movimentou as redes, principalmente as de ativistas pelo antirracismo. Infelizmente, ainda vimos pessoas compartilhando ideias difundidas no final do século 19 e início de 20 e que foram, há muito, derrubadas por teorias comprometidas e comprovadas pela ciência séria. Falo das teorias positivistas e eugenistas, que defendiam a hierarquização racial, baseadas em diferenças físicas e que as tratavam como defeituosas, defendendo, com isso, segregação e extermínio de diversos grupos étnicos e religiosos como negros, judeus, ciganos, entre outros. Essas teorias, que muito tinham de desejo supremacista e pouco tinham de rigor científico, foram totalmente derrubadas pela ciência. Mas o racismo não atravessa apenas a biologia, infelizmente. Ele se caracteriza como um sistema político, econômico, cultural e social, sustentado por ideologias que constroem estereótipos, que criam o outro como uma expressão do negativo. São essas características que ainda fazem com quem pessoas tentem explicar seus preconceitos a partir de teorias desacreditadas, mas ainda persistentes no senso comum. E a afirmativa infeliz da semana tentava vender a ideia de que pessoas negras são “naturalmente” mais propensas ao crime do que pessoas brancas.

Além de indignada, me senti ultrajada, como pessoa que pesquisa na área de política criminal, em ver ainda emergir, sem qualquer vergonha, um discurso caduco, digno de Cesário Lombroso (médico e psiquiatra italiano eugenista). Tentar atrelar raça a criminalidade é tão velho, burro, que até fiquei surpresa em como as pessoas são fracas ao tentar comprovar suas afirmativas que estão totalmente impregnadas de racismo. Não há outra palavra para isso. Não se pode atenuar o que é isso.

Uma postagem que fiz sobre isso, apontando a falácia da relação entre crime e raça – a partir dos dados encontrados, com enfoque nas principais tipificações para prisões no Brasil, como crimes patrimoniais (roubo e furto) e tráfico ou associação – viralizou justamente porque eu apontava um estudo da comarca de São Paulo que demonstrava o contrário dos argumentos racistas para crimes de furto e roubo. Além disso, apresentei a seletividade racial existente nas sentenças relacionadas ao crime de tráfico e associação, demonstrando que pessoas negras, com menores quantidades apreendidas de maconha, são menos consideradas usuárias, do que pessoas brancas. Por exemplo, os pouco mais de 9% de pessoas negras (somando-se o grupo de pretos e pardos, conforme a categorização do IBGE), que são entendidas como usuárias, portavam pouco mais de 37 gramas de maconha.

Já quando isso era verificado em pessoas brancas, a coisa mudava de modo a chamar atenção. Além do percentual de pessoas brancas consideradas usuárias saltar para pouco mais de 15%, elas, em geral, portavam maior quantidade de maconha, algo em torno de 42 gramas. Ora, esse é um dado que aponta não que pessoas negras sejam mais traficantes, mas que o sistema de Justiça é mais duro e penalizador para pessoas negras. Com isso, eu buscava atentar para o racismo em tentar vincular raça a criminalidade. Por exemplo, mais de 80% dos réus e sentenciados por crimes de corrupção são brancos. Isso não pode ser um dado que me faça dizer que seja “natural” que brancos são mais corruptos do que negros. Isso seria uma afirmação preconceituosa para tentar basear e sustentar medidas discriminatórias. Mas junto de certa viralização, vieram também os ataques.

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Apresentei dados de São Paulo, mas mesmo que existam outros estados que apresentem outros números, ainda assim não se pode fazer relações deterministas e essencialistas. Muitas são as questões que precisam ser discutidas quando pensamos o que caracteriza crime em uma sociedade e como são caracterizados ou construídos os perfis criminosos, porque vivemos em uma sociedade complexa, em que todos temos subjetividades, que também impactarão as instituições. Ao buscar desconstruir determinados argumentos, o que se pretende é que construamos cada vez mais mecanismos de tratamento equânime, principalmente ao lidar com a prisão, um dos mecanismos mais violentos de controle sócio-racial.

Com muita tranquilidade, não tenho problema com divergências. Confesso que já tive, mas fui aprendendo que muitas divergências podem acabar sendo potencialidades e agregar riqueza de perspectivas. Mas acho fundamental o respeito ao se pontuar divergências. Ataques gratuitos, majoritariamente de pessoas que só têm interesse em tentar comprovar alguma tese para se sentirem confortáveis com o seu racismo, não podem ser tolerados. E é sabido que quando se trata de mulheres, as pessoas se sentem mais confortáveis para questionamentos superficiais e agressivos.

A tese de doutorado do pesquisador brasileiro e PhD em sociologia Luiz Valério Trindade, defendida na inglesa Universidade de Southampton, apontou que as mulheres negras, entre 20 e 35 anos, são 81% das vítimas de discurso discriminatório e de ódio nas redes sociais. E que 65% dos usuários agressores são homens, entre 20 e 25 anos. O pesquisador analisou 109 páginas do Facebook e 16 mil perfis de usuários. Outro estudo, da Anistia Internacional, em parceria com a empresa de produtos de inteligência artifical, Element Al, apontou que mulheres recebem ofensas no Twitter a cada 30 segundos. As mulheres negras, asiáticas e latinas tinham 34% mais chances de receberem ofensas do que mulheres brancas; sendo mais intenso para mulheres negras, atacadas em 1 de cada 10 tuítes. Já mulheres brancas são atacadas em um a cada 15 tuítes.

Em entrevista ao portal UOL em dezembro de 2018, a pesquisa Milena Marin afirmou que “embora os abusos mirem mulheres de todo o espectro político, mulheres que não brancas eram mais suscetíveis aos ataques e mulheres negras eram desproporcionalmente miradas”. As plataformas digitais, no último período, dizem buscar e desenvolver metodologias e recursos para que esse tipo de ataque seja dirimido. Contudo, até agora parece que a coisa não está dando muito certo.

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Os intelectuais Adilson Moreira e Carla Akotirene chamam atenção em suas produções para o caráter e implicações dessas “microagressões” que são, segundo Akotirene, “sexistas de raça e ataques coletivos contra figuras intelectualmente expoentes”.

Uma questão que preciso chamar atenção nisso tudo é, também, para o nosso cuidado na exposição de mulheres negras. Em alguns momentos, podemos pensar que estamos ajudando, e, muitas vezes, estamos mesmo. Mas cada ato precisa ser ponderado pensando nas consequências que ele pode alcançar. Um exemplo é o desgaste mental em mulheres negras ao sofrer essas microagressões, como o que eu passei. E, também, se temos alguma estrutura para lidar com isso. Diferente de perfis de longo alcance, geralmente com pessoas que dispõe de equipe para acompanhamento das suas redes, muitas de nós não dispomos disso, somos pessoas físicas, normais, fazendo suas pesquisas, disseminando suas ideias com o devido cuidado e pensando no público que querem atingir. De fato, aprendi há pouco, que o conteúdo que produzo diz respeito a mim. E não se trata de uma reflexão sobre isso. Até porque não há qualquer questão sobre o apresentado, já que há firmeza nos dados e tranquilidade na análise apresentada. A questão que se coloca é sobre uma política de cuidados que precisamos construir e aplicar no cotidiano de nossas mídias sobre o que compartilhamos das pessoas, se elas assim o desejam e sobre como elas gerenciarão a troca produtiva com as pessoas alcançadas, mas principalmente com as agressões a que serão expostas, principalmente quando mulheres negras.

Alguns podem dizer que a pessoa que se vire ou saia das redes. Mas esse é um argumento que parte da perspectiva individual, de lidar com questões como essa, ou mesmo do autocuidado, como um estilo de vida que parte dos indivíduos. Eu não acredito nisso. Já disse aqui, mesmo que brevemente, sobre autocuidado radical. Uma perspectiva que preserva os indivíduos pelo coletivo, com políticas para isso, com uma mudança comportamental de todos nós ou de um grupo que se relaciona, com uma preocupação que partilha de que para o coletivo caminhar bem, seus indivíduos também precisam caminhar bem. Muitas são as maneiras de fazer isso no relacionamento nas redes, já que todos estamos expostos ao espaço público na arena digital. Em um momento tão difícil e frágil, precisamos cuidar mais de nós, de todos nós.

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