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O que eu não estou vendo?

Lembranças, planos e todo o mar do desconhecido: estamos cercados pelo ausente, que, muitas vezes, está mais atuante em nós do que aquilo que vemos

Por Liliane Prata Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 17 mar 2017, 14h54 - Publicado em 17 mar 2017, 13h01

Yesterday, upon the stair,
I met a man who wasn’t there
He wasn’t there again today
I wish, I wish he’d go away…

O poema de Hughes Mearns me lembra do gigantesco peso do invisível sobre nossos corpos.

Caminhamos, todos nós (pobres de nós?), assombrados por uma variedade de fantasmas: os traumas ligados ao que já passou, mas que jamais deixou de ser; o inconsciente e as circunstâncias nos regendo bem mais do que nossa pretensão gostaria; a saudade de quem já morreu e de quem vive, mas não está mais entre nós. Estou aqui, na minha cozinha, rodeada por eletrodomésticos e também por amigos e amores passados, orgasmos, danças e sorvetes que chegaram ao fim. Enquanto isso, planos e esperanças seguem respirando nesse inabitável lugar a que chamamos de amanhã, pois o invisível não é só nostálgico, ele também abraça o futuro, com seus desejos de ontem sobrevivendo como signos vazios, que já não remetem a nada. Mais concreto do que o presente, só mesmo o ausente, essa cortina que nos envolve no divã, nos sorrisos, nas lágrimas, nos sentimentos que ignoram o passar dos minutos das horas dos dias dos anos.

Achamos que estamos aqui, mas estamos lá, e também ali, e lá atrás, quem sabe do outro lado. Se estamos em todo lugar, como nos alcançarmos? O desbravamento de si mesmo é uma expedição bonita, mas talvez uma mata virgem resista até o fim: escura, desconhecida, para sempre fugitiva das nossas tentativas de apreendê-la, isso no melhor dos casos – quando nos dispomos a tal empreendimento.

Faço um chá e não sei se foi o aroma, o fogo, a fumaça que sobe da xícara, mas agora o poema se transforma em outra sombra que flagro me acompanhando: tudo aquilo que sei do mundo, mas que, ao mesmo tempo, desconheço; todas as convicções que defendo hoje, mas que me constrangerão amanhã, toda a consciência que virá daqui a trinta anos, mas que ainda não veio, ora, é claro que não veio, pois só virá daqui a trinta anos, que desespero! Que terrível a convivência com esse saber que só revelará depois, esse saber eternamente encoberto para aquela que fui – que sou agora. Que dor, mas também que bom, mas que dor… Saber que, desta cozinha, vejo o aprendizado que terei daqui a trinta, quarenta, com sorte (?) cinquenta anos e que vai desmentir tanto do que compreendo hoje sobre mim e o mundo.

Que absurdos ostento agora como se fossem a maior sabedoria? Que erros não estou enxergando?

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Que dor ser prisioneira do tempo, ser uma daltônica que age como esse estivesse distinguindo todas as cores.

Móveis desta cozinha, por favor, me digam: o que eu não estou vendo?

Mas agora chega de eu, agora vamos para o mundo. Respiremos fundo, xícara de chá, fogão, minha gata que acaba de passar a caminho do seu pote de comida, as pessoas do lado de fora desse cômodo, para lá dessas janelas: todos nós. Nossas discussões contemporâneas sobre fé, sobre racismo, sobre feminismo, sobre como devem ser a infância a alimentação as entrevistas de emprego os casamentos as rotinas os chefes os carros as gravatas os programas de TV os campeonatos de qualquer coisa a internet… Que ausente permeia nossas discussões? É isso que eu gostaria de saber, é isso que eu preciso saber, não sempre, mas hoje, agora, neste momento, aqui, nesta cozinha.

Estamos, todos nós, em 1885, 1886, 1887, no Brasil, às vésperas da proclamação da república e participando ativamente das discussões abolicionistas, ou estamos em, digamos, 1702, certos de que o destino desta colônia é ser colônia; absolutamente convictos de que os escravos devem ser escravos?

Estamos, todos nós, passando o dia num escritório de Mad Men, lutando do lado do sul dos Estados Unidos na guerra de Secessão, passando nossos finais de semana nos divertindo com lutas sangrentas de gladiadores ou, quem sabe, atores brancos cobertos de tinta preta, para, em seguida, com nossa família, rir de deficientes físicos no show de horrores do circo da cidade? Estamos receitando talidomida para pacientes grávidas, fazendo cirurgias sem antes lavar as mãos, defecando por todo o palácio de Versalhes, concordando com pessoas sendo jogadas na fogueira, considerando perfeitamente aceitável que mulheres não possam votar nem ser admitidas nas universidades? Estamos assinando um acordo para dividir um continente entre duas nações, servindo cerveja para as crianças no almoço e sendo acompanhados por elas na fábrica em que trabalhamos, nós que estamos vendo com naturalidade trabalhadores rurais de vinte e um anos morrendo de velhice, chamando de “corajosos conquistadores” aqueles que matam índios para dominar novos territórios, não vendo nada de mais quando os países mais desenvolvidos do mundo transportam escravos em navios negreiros?

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O chá acaba, olho o relógio, está na hora de ir para o trabalho.

Lá fora, o sol forte ainda não é suficiente para me tirar do lugar onde estou, ou do lugar onde não estou, mas que tanto me interessa, me perturba e me tira da vida, ao mesmo tempo que me joga com força na vida: a existência é isso tudo, afinal de contas – o que vemos, o que não vemos, o hoje embrulhado no papel de ontem, as certezas se remexendo no mesmo balaio da ignorância, tudo sob um céu incompreensível de onde cai a chuva que nos molha.

Só desperto de mim mesma quando, já no ônibus, me equilibro entre pegar o dinheiro na carteira e atender o celular que toca, oi, pai, como você está, eu vou bem, tudo certo por aqui, quer dizer, tudo indo.

Liliane Prata é editora de CLAUDIA e escreve semanalmente aqui no site. Para falar com ela, mande um e-mail para liliane.prata@abril.com.br

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