Os olhos do coração – conto de Amor e Sexo
Cida trabalha como faxineira e um dia, enquanto esvazia os cestos de lixo do escritório, descobre cartas e fotos rasgadas. Cida fica fascinada pela história e passa a colecionar aqueles pedaços de memória que todo dia um executivo jogava fora
Cida é fã de fotonovelas e as lê todas as noites
Foto: Getty Images
Quase todos já tinham ido embora. Era nessa hora que eu e um batalhão de faxineiros começávamos a trabalhar no enorme prédio de uma empresa de advocacia. Enquanto aqueles homens de gravata e aquelas mulheres bem-vestidas iam para casa, nós limpávamos a sujeira que eles haviam produzido. Minha rotina era basicamente esvaziar os cestos de lixo do sétimo andar e, depois, passar um paninho com álcool nas mesas.
Ganhava mal, mas me divertia. “Nossa, a doutora Priscila jogou um copo de café cheio no cesto dela, porcalhona!”, brincou certo dia Lili, o faxineiro que dividia as tarefas comigo. Quando o grande relógio da recepção marcava duas da manhã, batíamos nosso cartão e uma van da empresa levava a gente para nossas quebradas. Pelo menos tinha essa vantagem: não precisava me preocupar com ônibus nem com os malandros que ficavam mexendo comigo na rua. Lili descia dois pontos antes de mim. Ele era gay, mas todo mundo na vila em que ele morava o tratava com respeito.
O pai de Lili o expulsou de casa, aos murros, logo que ele assumiu. Por isso, meu colega morava com uma tia-avó. Foi ele quem me apresentou ao mundo das fotonovelas. Era eu chegar em casa e pronto! Tomava banho, comia o jantar que minha mãe deixava sobre o fogão e, então, corria para o quarto. Na cama, lia a fotonovela que havia comprado na semana. “Teresa, eu te amo.Vamos comigo para o Caribe!”, dizia aquele loiro alto, magro e de cavanhaque. “Não posso, Armando. Meu marido voltará e temo que ele possa te matar”, murmurava uma mulher magra e de lenço no pescoço.
Eu lia aquelas histórias românticas e ficava feliz. Ia dormir com a sensação de que apareceria um Armando em minha vida. Um homem lindo e educado, disposto a arriscar a pele apenas para se casar comigo. Na noite seguinte, lá estava eu na função de novo. Só tinha uma coisa no emprego que me incomodava: o Carlão. Ele era o chefe das faxineiras. Vez por outra, vinha com piadinha para o meu lado. “Posso te arranjar uma promoção, galega!”, dizia, me secando da cabeça aos pés. Eu olhava feio e ignorava. Mas o idiota não desistia. Suas cantadas grosseiras não pareciam nem um pouco com as da fotonovela.
Os executivos tinham acabado de sair quando fui recolher o lixo da sala do doutor Neto, um dos gerentes da empresa. Um tipão! De repente, vi que havia várias fotos rasgadas no cesto dele. Olhei para o lado: ninguém estava por perto. Curiosa, peguei os retratos e os juntei. Pude observá-los com mais atenção. Eram de uma mesma mulher. Em algumas poses, estava abraçada ao doutor Neto. “Para meu querido marido com carinho, Dia dos Namorados, 12/06/1999”, estava escrito atrás de uma delas. “Mas por que ele tinha rasgado tudo aquilo?”, me perguntava. Quando ia pegar uma carta toda borrada, Lili chegou.
Disfarcei e guardei tudo no avental. Ele era indiscreto e poderia contar a alguém o que eu estava fazendo. Então, estaria ferrada de vez. Mais tarde, em casa, recuperei todas as fotos. Nelas, o casal parecia tão feliz. Colei a carta rasgada e comecei a ler. “Joyce, não sei se vou superar a separação. Prefiro morrer. Pena que nunca terei coragem de lhe entregar estas cartas. Talvez seja melhor assim”, dizia a correspondência.
Achei estranho e, no dia seguinte, passei a observar melhor o doutor Neto. Não me parecia alguém com problemas. Estava sempre rindo ou contando piadas a todos os colegas. Não dava para imaginar essa mesma pessoa escrevendo aquela carta e rasgando todas aquelas fotos. Logo que ele saiu do escritório, corri para seu cesto de lixo. O executivo havia jogado mais fotos e cartas rasgadas no cesto. Parecia que estava pedindo para que eu as visse e tentasse salvá-lo de alguma coisa ruim que ele não pudesse contar a ninguém.