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Maria Homem: “As pessoas estão cada vez mais solitárias”

Trabalhe o interior, ouça o outro, contenha o ódio e a mercantilização do afeto. Isso resume o caminho de felicidade proposto pela psicanalista Maria Homem

Por Fernando Esselin
Atualizado em 12 abr 2017, 16h47 - Publicado em 3 dez 2016, 09h00

O divã é uma peça sóbria e fundamental na bela casa com quintal, no bairro Siciliano, em São Paulo. A luz tênue oferece cumplicidade e a porta grande de madeira se fecha para garantir que os segredos ditos ali serão decifrados e bem guardados pela psicanalista paulistana Maria Homem. No seu consultório aconchegante, ela se descreve assim: “Vivo de escutar as pessoas e de falar com elas – e também com suas criações, seus sonhos, livros, filmes, poemas, sintomas”. O material revelado pelo analisando e as associações que ela faz com base nisso permitem a ele acessar o próprio inconsciente, seus fantasmas e se entender melhor.

Nas mãos de Maria, a obra do psicanalista francês Jacques Lacan, o cinema e a literatura viram ferramenta de trabalho. Ela escreveu o livro No Limiar do Silêncio e da Letra – Traços da Autoria em Clarice Lispector e aponta como inspiração, além dessa escritora brasileira, o filhinho de 6 anos e os alunos com quem troca experiências. Professora da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) e pesquisadora do Núcleo Diversitas, da Universidade de São Paulo, virou queridinha ao postar vídeos no YouTube e ensinar, na Casa do Saber, temas como o amor, o abandono do coletivo para sermos single, o fim dos gêneros e o preço da frenética busca pela felicidade. Nossa conversa com Maria:

CLAUDIA: Um dos seus temas é a dor no amor. Por que dói?

Maria Homem: Sobretudo porque idealizamos uma coisa e vivemos outra. Existe um descompasso na forma como levamos as relações afetivas. Exigimos muito do outro. E, na atualidade, isso é agravado pelas transformações dos lugares sociais, psíquicos e econômicos ocupados por homens e mulheres. Há também o deslocamento das ideias de gênero e sexualidade. Ou seja, além do velho embate platônico, entre o ideal e o real, temos agora múltiplas situações que interferem na engenharia dos afetos. Por fim, não esqueçamos, estamos imersos numa lógica profundamente consumista: Narciso se entedia com o objeto de amor e já deseja o seguinte.

Por que você diz que abandonamos o coletivo para sermos single?

Saímos de uma base coletivizada, em que a autoridade era clara, ligada à tradição, a Deus, à figura do pátrio poder. Perguntamos: “Por que é você quem sabe? Por que é quem manda? Eu também penso, quero negociar”. Essa foi a virada moderna para fundar a individualidade. Hoje a subjetividade está ampliada para grupos antes alijados. Mulheres, gays, pessoas com deficiência tornaram-se sujeitos. Há muitas tendo filhos sem marido, casais morando em casas separadas e idosos vivendo sozinhos. A família nuclear vai quase implodir para se firmar a família mosaico: um pai aqui, uma mãe lá; um pai namorando um moço, depois termina o romance, volta… São singularidades que constroem teias. Arquitetonicamente, ocorre a redução dos espaços, com apartamentos lindos, minúsculos e caros. Onde se agrupa? No salão de festa, no bar, na academia. As pessoas se veem cada vez mais solitárias, viraram single. Talvez em 50 anos isso não seja uma queixa; apenas uma condição do humano. O que notamos como tendência é o cohousing. O movimento crescerá porque a pessoa diz: “Opa, é chato chegar e não ter com quem falar”. O modelo “grande casa de família” cederá a vez para moradas compartilhadas por amigos ou duplas com filhos. Já começam a surgir moradias menores em terreno de uso comum, com cozinha única, um quintal e bicicletas para todos. São até mais baratas.

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A sociedade se psicanalisa por conta própria e, como você observa, chega ao consultório dizendo: “Meu ego é inflado” ou “Fui castrado no passado. Freud explica”. Isso dificulta o autoconhecimento?

Freud entrou na cultura de massa. Todos usam as ideias do complexo de Édipo, da pulsão, do recalque. E culpam o pai, a mãe. É interessante? Sim, porque chega-se ao consultório. Antes, as pessoas não paravam para se ouvir e para se abrir também. Falar transforma. Mas elas vêm com vários diagramas racionalizados que brecam o acesso ao inconsciente. Um analisando demora para atingir algo elaborado. O processo do autoconhecimento exige uma alquimia e dói. Para se entender, a pessoa dá voltas, abre uma porta, fecha. Devagar, nas sessões, vão ocorrendo furos naquele discurso pronto.

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Como lacaniana, você enxerga melhor o poder da palavra. O que queremos dizer com tanta verborragia nas redes sociais? Que contornos ganhou o falar?

Convidados a opinar sobre tudo, estamos errando muito com tanta verborragia. Eu desconfio dessa falação. Para as eleições e as crises políticas, 2016 foi um ano-chave. No entanto, não houve avanços. Até aqui os discursos têm sido regressivos; um sintoma contemporâneo dos mais terríveis. A falação é vazia, inconsequente, primária e tem como função básica deixar escoar o afeto. Ela é quase aliviadora, pega carona na emoção, mas vai ladeira abaixo. O conteúdo tem sido narcísico. Ninguém escuta o outro, só a si mesmo. A pessoa diz: “Seu coxinha”, ou “Seu petralha de merda”. A vida é mais complexa e mais dura que isso. Acho que temos de calar. A pergunta fundante da política é: “Como viver juntos?” E ela não está sendo respondida.

Em uma reflexão sobre a mulher, escreveu: “O corpo é meu e eu o ofereço ao seu olhar, mas não pode pôr a mão. Você olha. Esse é o limite”. Os homens já começam a entender isso?

O valor da virilidade se liga à força e à coragem. Está lá nos clássicos, em Homero, Ulisses, nos heróis. A nossa tradição pergunta: “Você é forte ou fraco?” Meu filho começa a entender essas categorias e quer saber: “Quem pode mais? Meu pai ou fulano?” O masculino está aprisionado na potência. Então, como o homem vai se manter no lugar de desejante sem usar a força sobre a mulher, o objeto de seu desejo? Mas ela passou a ser também desejante e pensa: “Como manter vida comum quando eu, hoje, sou sujeito e ele também?” Para entrar na cultura do estupro e da lógica da violência doméstica: o homem deseja a mulher e ela se faz desejável. Ela joga com o próprio corpo, e isso integra o feminino. Ele fica ereto; porém, depende de algo fora para atingir esse estado. Ela não. É genuinamente poderosa. Isso é uma vantagem que o homem não suporta – tanto que sufoca a mulher. E usa a violência sobretudo quando se vê banido do posto de virilidade. Quando ela diz “Não, você não pode” ou vai com outro, está feita a afronta à potência. Ele supunha que ela fosse sua e se sente traído – estopim número 1 para o feminicídio. A cultura do estupro é capitalista, está na matriz do usufruto. O cara afirma: “Eu quero esta mercadoria. E ela, nessa embalagem gostosinha [sic], vai recusar por quê?”. Trata-se de uma obediência à cultura capitalista, que “fetichiza” a mercadoria. Em um paradigma feminista, ela reage: “Eu posso não aceitá-lo”. E pode mesmo. Então, tem sido, realmente, complicado.

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Onde vamos parar com tudo isso?

Sonho com o dia em que a mulher exerça sua sensualidade, corporeidade e seu erotismo como quiser. Não sei se tem uma chave para virar: “Agora sou mulher, pode olhar para mim, para o meu vestido, me deseje”. A gente está patinando um pouco aí. Não sabemos como barrar o machismo – e o barramos com certa violência. Aqui critico um discurso feminista que, a priori, reclama: “O cara é machista, olhou o meu peito”. Como é que a gente vai manter o elo entre dois sujeitos desejantes? Não podemos perder a relação entre os corpos.

Por que o homem, em geral, não suporta a rejeição?

Ele nasceu em berço esplêndido. Mãe e filho formam uma das fantasias mais pregnantes da história. O homem tem de fazer um grande luto para sair do amor materno e criar laço com outra. Muitos não fazem esse percurso, ficam “casados” com a mãe até morrer. Viram um dom-juan ou escolhem romances fadados ao fracasso para que, inconscientemente, continuem na parceria imaginária mãe-bebê.

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Neste caldeirão de gêneros em que vivemos, quais são as conquistas e os limites?

Logo será indiferente o gênero. Um escutará o outro como parceiro na caminhada pela Terra. Eu nasci em cromossomos XX, reproduzo, carrego a vida. Sou feliz assim, mas poderia não ser e não me faria menos sujeito por isso. No momento, vivemos um delírio de desconexão com a natureza, flertando com a capacidade de obter qualquer coisa por meio da carne. Com a tecnologia robótica, criamos outro sexo, outro coração. É o biopoder, a tendência cyborg, a inteligência artificial, o ser e não ser humano ao mesmo tempo. Temos homem em corpo feminino, mulher em corpo masculino, gente que se transforma, toma hormônio, faz cirurgia. O humano tem muita ambição, está tentando romper o limite do real. Não sei quanto é loucura e quanto é ousadia. Daqui a 100, 200 anos, veremos isso apenas como uma encruzilhada atravessada. Seremos o que quisermos.

Você afirma: “Busca-se a felicidade e encontra-se a depressão”. Por quê?

A busca deveria ser pautada em: “Como podemos, juntos, criar formas mais ricas e simples de viver?” Por que a gente está escapando da pergunta: “O que é interessante para mim e para o coletivo?” Permanecemos no binômio simplista, infantilizado e maníaco-depressivo. Ele alterna euforia – muito artificialismo em uma alegria bombada, festiva, de entretenimento – e depressão. Essa felicidade é oca. A clínica revela que não está funcionando e, por isso, a pessoa cai no oposto. Depressão não significa melancolia criativa. Ela é nada. E também uma doença que pode paralisar.

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O casamento voltou a ser celebrizado e glamourizado. Um ideal de perfeição a ser perseguido. Por quê?

A perfeição é quase uma obsessão. Um dos nomes dela, hoje, é sucesso. O que está glamourizado é o espetáculo. Compra-se o casamento-show: a preparação, a chegada à igreja, o buquê, o jantar, o chinelo de brinde, a pousada na ilha. Tem vídeo e foto do antes, do durante, da lua de mel. Acreditamos na imagem. Mais tarde vem a vida. E ela não combina com a espetacularização das coisas. É árida, um batidão difícil.

É possível uma pessoa viver sem ódio?

Não. Porque o ódio é um sentimento estruturante. Está ali, no bebê, vai destruir dentro ou fora. Contrariado, ele reagirá com agressividade. E encontrará uma contenção de quem está do lado de fora. Nesse momento, descobre o obstáculo, que é o outro. Então, o ódio ajuda a elaborar os contornos do eu. Precisamos da ação de forças em sentidos opostos: a de ligação e conexão que se contrapõem à de separação e destruição. Não dá para só colar; você precisa quebrar, derrubar, desfazer vínculos para construir outros elos. O problema não é o ódio, mas a atuação dele. Um adulto deve entender que o outro é autônomo e independente, tem seu jeito de exercer a sexualidade, as crenças e ideologias. Discordando dele, em vez de reagir com fúria, deve aproveitar a oportunidade para elaborar a intolerância. E tem a obrigação de conter seus impulsos agressivos.

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Hoje, quais são os principais adoecimentos da mulher?

Todos. Ela não é mais só a mãe e o objeto de desejo do parceiro. Nem só Maria nem só Madalena. Lugar de mulher é onde ela quiser. Então, ela tem crise de Burnout, pifa, porque é grande executiva. Ou pira porque está na hiperprodutividade, mesmo não tendo cargo de chefia. No trabalho, ainda tenta entender a regra: é altamente exigida, tem de ser muito boa para ter bom salário e, para subir, precisa ser duplamente melhor. Se vê diante de deveres com o corpo, a casa, o homem, a escola dos filhos, a empregada. Pode viver também a síndrome do ninho vazio: se dedicou à prole, cozinhou, passou… O marido deu um pé na bunda; foi com a mais nova. Os filhos entraram na faculdade, acham que a mãe está chata e, igualmente, saíram fora. Ela se encontra na depressão clássica da menopausa. Estou caricaturando as coisas, mas essas situações são fonte de sofrimento para a mulher contemporânea. É interessante que ela possa adoecer; significa que está aumentando as raias da complexidade do seu ser. E, se ela se cuidar, claro, enfrentará melhor os embates.

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Uma de suas críticas às práticas do trabalho é sobre o networking. Ele é um risco para a sinceridade entre amigos?

Sim, é uma prática altamente problemática, parte da nossa forma hipermercantilizada de viver. Compreendemos que nossas relações formam uma rede que gera contatos, trabalho e dinheiro. E eles possibilitam novas relações, outros trabalhos e mais dinheiro, num algoritmo cada vez mais difícil de manejar. No final, talvez nem saibamos com quem gostamos de conversar, comer, tomar uma cerveja, passear, fazer sexo e – o que é isso mesmo? – fazer amor. O que de fato somos ou sentimos quando priorizamos a lógica utilitarista e trazemos o networking para o interior, para o outrora campo dos afetos?

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