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Alienação parental: a lei e suas brechas no resguardo às crianças

Lei busca impedir que um genitor dificulte o convívio dos filhos com o ex, mas é criticada por ser usada em defesa de pais acusados de violência familiar

Por Letícia Paiva Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Guta Nascimento
30 jan 2017, 18h14

Aos 11 anos, Davi se despediu dos amigos da capital paulista em duas festas, empacotou os brinquedos e os cadernos e partiu com a mãe e a irmã, Malu, 7, rumo ao interior do estado. O pai ficaria em São Paulo, a mais de 300 quilômetros de distância. Não havia explicação clara para aquela mudança, que já começava a doer tanto, mas Davi – hoje universitário, 23 anos – evitou questionar. A caçula entendeu assim: “Minha mãe disse que seria melhor; então, era o certo”.

Um mês depois, morando na casa dos avós maternos, as crianças receberam a visita do pai – o que se tornaria raridade. “Sem rodeios, ele anunciou: ‘Eu errei e estamos nos divorciando’ ”, recorda Davi. “A todo momento, ouvíamos dos parentes que minha mãe tinha razão e que ele havia feito uma coisa muito errada.”

Anos depois, o discurso se intensificaria: o pai era culpado não só pela ruína do casamento mas também pela melancolia dos filhos, a quem vitimara. Por três anos, ele havia mantido uma relação extraconjugal, que se oficializara após a separação. A mãe nunca o perdoou. Repetia sempre que o ex era um adolescente irresponsável e que ela não queria os filhos “perto da outra”.

Ela não escondia o ciúme do tempo que eles gastavam com o pai e se punha no lugar de perdedora. “Eu sou a chata; ele é o cara legal”, lançava. Davi se lembra das inúmeras vezes em que viu a mãe em lágrimas: “Acabava chorando junto, deitado na cama com ela”. O pai foi se afastando do espaço blindado pelos ex-sogros. Ligava só nos aniversários e começou a atrasar a pensão. Sua ex reiterava aos filhos: “Sou a mãe e o pai de vocês”.

A psicóloga Isabel Cristina Gomes, especialista em família e professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), alerta: não saber lidar com a falência do casamento é algo que deixa uma série de prejuízos para a parte mais frágil da família, justamente as crianças. O roteiro vivido pelos irmãos Davi e Malu – que tiveram os nomes trocados para resguardar a identidade deles, assim como os demais entrevistados desta reportagem – é recorrente.

A cada ano, são realizados mais de 300 mil divórcios no país, sendo 44% entre casais com filhos menores de 18 anos. Muitas dessas crianças são colocadas na linha de tiro pela parte que se sente traída ou abandonada e não consegue superar o rompimento. São práticas comuns desqualificar e difamar o (ou a) ex perante os pequenos e exigir lealdade e cumplicidade deles.

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Uma forma de vingança

Existe uma lei que dispõe sobre essas atitudes nocivas, identificadas como alienação parental. Embora vigore desde 2010, essa regra de direito é praticamente desconhecida, e poucos recorrem a ela. A alienação se dá quando um dos pais induz a criança ou o adolescente a repelir o outro genitor, com quem acaba tendo a convivência dificultada. “O filho é usado para atingir o ex”, diz a psicóloga Gomes.

Como até hoje as mães quase sempre ficam com as crianças após o divórcio – em 80% dos casos, a guarda unilateral é delas –, a mulher é a alienadora mais comum. Se detectada, a conduta é reprimida pelo Judiciário com advertências ou inversão da guarda. A má prática aparece em diferentes intensidades.

Para a juíza Vanessa Aufiero da Rocha, da 2ª Vara de Família do Fórum de São Vicente, no litoral paulista, existe o “obcecado”, que quer se vingar cortando os vínculos do genitor a qualquer custo; e o mais sutil, que não percebe o estrago que pode provocar. No escopo da sutileza – às vezes misturada com artimanhas –, mudar de cidade sem justificativas (como um novo emprego) também é alienar.

O advogado de família Paulo Eduardo Akiyama, de São Paulo, explica que, no princípio, a ação não aparece escancarada, mas tem o objetivo de apagar o genitor da memória dos filhos. É uma tentativa de punir, mesmo que veladamente, aquele que está reconstruindo a vida sem os que ficaram para trás.

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Há três anos, o médico Miguel, 42, e a ex-esposa optaram pela guarda compartilhada. O filho, de 5 anos, passava parte da semana com cada um. “Sem avisar, a mãe trocou São Paulo por um estado do Sul”, conta ele. Enquanto movia um processo por alienação, quinzenalmente precisava pegar um voo para visitar o garoto. “Isso quebrou nosso acordo e me impediu de acompanhar a vida da criança, como eu gostaria”, relata ele.

A dupla acabou retornando para a capital paulista, e o médico retirou a ação da Justiça. Agora há um novo processo em andamento: a ex-mulher alega que ele deixou de arcar com a educação do menino no período em que moraram fora. Miguel afirma que, mesmo após a mudança, continuou pagando o colégio no qual o filho estava originalmente matriculado.

Com a sequência de golpes em inúmeros rounds, crianças e adolescentes vão somando danos. Ao completar 18 anos, Davi voltou à cidade natal para cursar direito, projeto apoiado pelo pai. Eles almoçavam juntos às quartas-feiras. “Gostava das conversas, mas me apavorava a possibilidade de ficar parecido com meu pai.” No terceiro ano da graduação, uma depressão se manifestou. Davi recebeu o diagnóstico de transtorno bipolar e deixou a faculdade.

Nas sessões de terapia, concluiu que o divórcio conturbado, o luto eterno vivido pela mãe e a angústia que derivou de tudo isso teriam sido determinantes. O pai e Davi nunca falaram sobre essa condição psicológica. “Aprendi que ele tem limitações e não é o único responsável.” Só na terapia percebeu que não havia um culpado. “Nós criamos essa ideia”, constata. Malu não desenvolveu distúrbios emocionais, mas mostra outro tipo de perda: “Meu pai não faz parte da minha vida, não sabe quase nada sobre mim”.

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Pressionada a se aliar a um dos pais, a criança entra em conflito. “Fazê-la escolher entre duas pessoas amadas pode comprometer seu futuro”, diz a psicóloga da USP. “É preciso deixar os filhos criarem suas perspectivas por meio das próprias observações.” A família e a Justiça tendem a buscar sempre um culpado e uma vítima. “Alienação parental não é história de vilão e mocinho. Existe uma rede que permite isso”, observa a juíza Aufiero da Rocha.

Essa teia pode contar com a família do alienador, que corrobora com as manipulações, e com o genitor alienado, que não se esforça para desfazer a imagem negativa criada em torno dele. “O adulto deve proteger a criança nessa situação. Não pode se esquivar da responsabilidade”, afirma a psicóloga Fabiana Aidar, que atua como mediadora voluntária nos casos que tramitam no Fórum de São Vicente. Não raro, o genitor se afasta por comodismo, para se ver livre do passado ou começar uma nova história familiar.

O mais comum é que sinais da alienação apareçam em meio a processos judiciais de outra ordem, como alteração da guarda ou pensão alimentícia. Ainda assim, cresce o número de ações iniciadas com a acusação de alienação. “Mas nem todas as alegações de alienação parental são verdadeiras”, diz a juíza Tarcisa de Melo Silva Fernandes, da 3ª Vara de Família do Fórum do Tatuapé, em São Paulo.

Estudos psicossociais da família, análise de registros documentais e de trocas de mensagens com insultos, por exemplo, são meios de detectá-la. “Há ainda situações em que o filho desenvolve rejeição a um dos pais por interpretação própria”, pondera a juíza. Nesse caso, a criança dá mostras – ou verbaliza explicitamente – de que não quer estar com determinado genitor por não se sentir bem em sua companhia.

Em situações mais sutis, a família pode ser encaminhada para sessões de mediação, que duram até seis meses. “Tentamos pôr fim ao conflito ouvindo os dois lados. Levamos o alienador a perceber o que não é saudável e o alienado a se empenhar na participação efetiva da vida dos filhos”, explica Aidar. A criança não entra no atendimento dos pais. Em separado, ela tem a oportunidade de ver que seu amor por ambos é legítimo, que não precisa escolher a quem ser fiel.

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(Ilustração Ashley Mackenzie/)

Mau uso da lei

Para evitar a alienação, existem alternativas de prevenção nas ainda raras Oficinas de Pais e Filhos em tribunais de estados como São Paulo, Bahia e Goiás. Em uma sessão, com duração de três horas, recém-divorciados discutem a lida com a prole e a perspectiva de retomada das próprias vidas em outras bases. “Os tipos mais simples de alienação são resolvidos ali, com diálogo”, afirma a juíza de São Vicente, onde a iniciativa nasceu. “Se as atitudes são preocupantes, chegando a falsas denúncias, a mediação acaba não dando resultado e as brigas viram casos judiciais”, diz a mediadora Aidar.

É na guerra de processos que mora a principal crítica à lei. “Ela pode ser distorcida e virar estratégia de defesa de réus e condenados por violência doméstica ou abuso sexual, principalmente”, afirma a promotora Valéria Scarance, coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério Público paulista. “Muitas vezes, quando uma mulher noticia um abuso sexual, o homem se diz vítima de alienação parental, alega que a ex inventa histórias sobre seu caráter e seu comportamento só para afastá-lo dos filhos”, explica.

O ex-marido de Laura, 44 anos, funcionária pública, foi condenado por lesão corporal grave e recorreu pedindo que o juiz considere a alienação parental que estaria sendo orquestrada por ela. Antes do fim do casamento, que durou dez anos, Laura já sofria agressões físicas rotineiras. Em 2011, depois de uma surra que a levou para o hospital, ela denunciou o marido, pôs fim à relação e ficou com o filho.

Uma medida protetiva ainda mantém o ex a 300 metros de distância dela. “Fico preocupada com o que pode acontecer nas visitas. Meu filho volta muito agressivo.” Dezenas de processos com trocas de acusações foram movidos pelas duas partes. Muitos estão em andamento. “Não fui condenada por alienação parental, mas o magistrado já indicou que eu estava fazendo uma campanha de vingança contra o pai do meu filho”, revela.

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Justiça despreparada

“Parte dos juízes está despreparada, desconhece a lei e não dá uma sentença cuidadosa”, afirma Scarance. “Não se pode decidir por alienação parental ou inverter a guarda quando existem, pesando sobre o genitor, suspeitas de estupro ou outro tipo de violência”, argumenta a promotora. “Há a possibilidade de pôr as crianças em risco. Elas podem ainda sentir medo de viver com o adulto que cometeu agressões, mesmo que no passado.”

Tarcisa Fernandes defende a adoção do modelo compartilhado como a melhor prevenção da alienação parental. “Nele, o tempo de convívio com os filhos é dividido entre mãe e pai. Isso significa que não haverá tanto espaço para a implantação de falsas memórias”, afirma. Antes da transição para a compartilhada, estimulam-se o diálogo em família e a disposição de colaborar. Ações como essa poderiam ter dado a Davi e Malu referências de adultos mais equilibrados em quem pudessem se espelhar.

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