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“Nem sempre fica evidente pelo que estão me discriminando”

A blogueira e ativista Jesz Ipólito fala sobre sua luta contra os diversos preconceitos que sofre por ser gorda, negra e lésbica.

Por Camila Bahia Braga Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 15 abr 2024, 16h41 - Publicado em 23 mar 2017, 19h08

A gordofobia pode ser entendida como o conjunto de opressões que atuam sobre a vida da pessoa gorda. Ela se manifesta em preconceito verbal, muitas vezes disfarçado de piada; mas também de forma institucionalizada, com catracas e assentos do transporte público em tamanhos restritos, desvalorização das habilidades profissionais e sociais, pressão estética e outras formas de estigmatização. Tudo partindo de um pressuposto de que as pessoas acima de um “peso padrão” são desleixadas, com falta de autocontrole e amor próprio.

Recentemente, tem se ampliado o movimento de mulheres que lutam contra essa opressão e buscam estimular o empoderamento de outras pessoas consideradas “acima do peso” padrão. Consciente da importância de se ampliar as discussões sobre o tema, CLAUDIA preparou um especial que será publicado ao longo do mês de março.

Leia também: A gordofobia afeta carreira, saúde e felicidade de pessoas gordas

Entrevistamos Jéssica Ipólito, 25 anos, autora do blog Gorda e Sapatão. Ela também colabora no Blogueiras Negras e em outras plataformas. Jesz é militante do movimento negro e adepta do feminismo interseccional – que reconhece as diferenças entre as mulheres e respeita todas as lutas: de gênero, de raça e de classe social, por exemplo. Em seus textos, ela busca discutir diversos temas caros às mulheres, como a vida das mulheres lésbicas, o corpo positivo e as relações familiares.

A defesa da blogueira sobre interseccionalidade parte do pressuposto de que “nós somos várias, diferentes, com muito em comum mas também com nossas diferenças. Preservar as diferenças é extremamente importante para não apagar vivências e culturas.”

Ilustração de Annie Gonzaga, participante do ‘Desafio Arte Gorda’, lançado por Jesz em seu blog (Annie Gonzaga/Reprodução)

CLAUDIA: Uma das formas como a gordofobia opera é pela exclusão de representações gordas reais – não caricatas – na mídia e nas artes. Como você enxerga essa lacuna e como atua contra ela?
Jéssica Ipólito: Precisamos começar a entender que não se trata de uma lacuna, não se trata de um espaço vazio ou uma falha. A mídia está preenchida com corpos brancos e magros, exaltando heterossexualidade e o que chamam de “poder” – que faz parte de todo um conjunto de características que foram se entrecruzando para fazer de corpos a representação do que significa ser belo, atraente, sensual e, consequentemente, o que significa parecer alguém “de caráter”, confiável e amigável: uma pessoa branca e magra! Estamos lidando com as consequências de uma colonização pesada de poucos séculos atrás e que veio se atualizando conforme o tempo e os sistemas econômicos, as dinâmicas de trabalho e, consequentemente, mantendo determinados corpos em determinados lugares.

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Há inúmeras formas de lutar contra um sistema escravocrata e racista, mas tudo é na base da resistência, do entendimento político de que as circunstâncias em que vivemos hoje tem motivos históricos e bem específicos, e está longe de ser prioridade nosso bem viver. Recentemente empresas de diversos segmentos acordaram pra vida e entenderam que pessoas negras consomem produtos. Entenderam que pessoas gordas querem estar na moda, querem fazer a moda – e que tem gente preta fazendo também. Entenderam que LGBT’s usam batom e maquiagem, entenderam que essas pessoas, marcadas socialmente com insígnias da exclusão, fazem parte da população economicamente ativa! U-A-U!

E aí passaram a direcionar produtos para nós, esse contingente que segue invisível quando se trata de reparação social concretamente. Porque até querem falar da nossa dor, da opressão que sofremos, mas não querem nos atender nos hospitais se não for para fazer cirurgia de redução de estômago, não querem que a gente caiba em nenhum assento… Querem manter nossas opções de roupas em uma arara para concentrar a humilhação contida em cada atendimento, querem que sejamos só sofrimento, sem nenhuma reparação.

 Nas bancas de revista o que predomina é a brancura, os títulos que saltam aos olhos são sobre dietas e viagem de famosos; atualmente há uma suposta tentativa de “mudar”, mas o fato é que continuamos à margem, pois não contratam mulheres gordas e pretas, não contratam as que são “sapatonas demais”, nem as que são mães… Não são mulheres comuns que estes espaços selecionam, porque o aviso de “pessoa com boa aparência” está implícito no discurso, nem precisa escrever nada. Para além disso, a mídia segue ignorando que a comunicação é um direito das pessoas, de se informar com qualidade e de se manifestar também.

Arte de Steh Boaventura, participante do Desafio Arte Gorda (Steh Boaventura/Reprodução)

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CLAUDIA: Empresas e agências de publicidade tem adotado campanhas que defendem a diversidade dos corpos (como a Dove com as mulheres gordas e os cabelos crespos e cacheados). Por que você acha que a sociedade ainda insiste em exigir um único padrão de beleza da mulher, na contramão da nossa diversidade?
Jéssica Ipólito: Como disse, essas empresas entenderam que nós temos poder de consumo, não estão sendo bondosas em ilustrar campanhas publicitárias com mulheres gordas brancas, mulheres negras gordas, as ditas “mulheres reais”, que, na verdade, só agora estão sendo vistas porque o consumo nunca sai de cena, e agora encontraram vários “tipos” de consumidoras. Essas empresas são selvagens, visam lucro e não reparação social, é só cartaz e não mudança de paradigma.

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Manter um único padrão é altamente recomendável, porque ele precisa existir para para que continuem existindo “as outras pessoas”, ou mais bonito dizer “diversidade”. Além disso, dá muito dinheiro provocar depressão e auto-ódio nas mulheres, incentivar o consumo de drogas (vulgo, remédios) para emagrecer, dietas loucas e gel redutor de celulite, iogurteiras, grelha top para assar aquele peito de frango da janta, bem sequinho e suculento! Reduzir as mulheres ao corpo delas é desestabilizar nosso psicológico, violentar nossas subjetividades e delas extrair dinheiro. Uma equação simples.

Aceitar a nossa “diversidade” é aceitar que somos humanas, e justamente não aceitam porque somos a “diversidade” que é vista com olhos de exotificação, de estranheza, de esquisitice, extravagância. Sendo nós, mulheres negras, a maioria feminina nesse país, fica nítido porque fomos alçadas à essa categoria de “diversas”, uma torpe tentativa de dizer “nós aceitamos que vocês consumam nossos produtos”. Mas isso não significa que nos vejam como pessoas, só veem nossa cor, nossa cara linda preta marcante em todos os lugares, aquela coisa super diferente. Por isso até fingem aceitar, mas a verdade é que vão continuar mantendo um único padrão porque é ideologicamente rentável. Porque a nossa morte não sensibiliza, nem choca mais as pessoas: somos arrastadas na rua e ninguém se importa, nos dão 111 tiros em plena juventude e ninguém se importa.

Desumanizar, subalternizar indivíduos, matar de diferentes formas as pessoas, considerá-las sem alma, sem cultura, amontoa-las em cubículos gradeados, humilhar e satirizar diariamente, enfim, violentar mulheres para manter uma sociedade racista dá dinheiro, muito dinheiro! Nós não passamos de números, a contramão é impormos nossa humanidade e resistirmos por todos os meios possíveis e imagináveis.

Ilustração de Emília Santos, participante do Desafio Arte Gorda (Emília Santos/Reprodução)

CLAUDIA: Li em um relato seu que você se considera um “instrumento político para somar às outras”. Qual a importância de se levantar e celebrar um corpo gordo e negro?
Jéssica Ipólito: A importância consiste em quebrar um silenciamento histórico que foi imposto sob nós, mulheres negras lésbicas gordas. Pois sempre estivemos falando, lutando, guerreando, obtendo conhecimentos preciosos através da oralidade, essa prática ancestral. Nunca deixamos de estar em movimento, celebrando, erguendo a voz e enfrentando o cotidiano difícil que é esse de sobreviver na precarização da vida. Audre Lorde me conduz pela sua poesia e não me deixa esquecer que, mesmo quando falamos nós temos medo das nossas palavras não serem ouvidas, nem bem-vindas, mas quando estamos em silêncio nós ainda temos medo, então é melhor falar, “Tendo em mente que não esperavam que sobrevivêssemos”.

Arte de Ghiza Rocha, participante do Desafio Arte Gorda (Ghiza Rocha/Reprodução)

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CLAUDIA: A falha de representação ocorre também quando o assunto é sexo – no discurso ou na imagem. Que falta faz a perspectiva do sexo gordo?
Jéssica Ipólito: Faz muita falta falarmos de sexo! Porque ok, as pessoas ainda acham que mulheres gordas não fazem sexo, mas, na real, nós fazemos sim, e, inclusive, transamos com mulheres também! Só que a falta aí não pode ser tão somente sobre imagem, tem que ser sobre autoconhecimento e proteção, autonomia e responsabilidade consigo mesma.

Nosso país tem colecionado estatísticas na área de saúde no que diz respeito a DST’s e tudo que temos são campanhas no período de carnaval, distribuição em massa de camisinhas, alguns mutirões para coleta de exames e orientação. E só. Porque não há interesse real de tentar mudar uma cultura que é basicamente uma ode à sexualidade masculina desenfreada, como se as pessoas só transassem no carnaval.

Mas é claro que não falamos mais sobre sexo porque exige falar sobre corpos e a nossa sociedade é muito puritana-cristã-evangélica e não aceita falar sobre corporalidades, sobre doenças que os corpos diversos transmitem em certos contatos uns com os outros. Não gostam de pessoas, mas sim da ilusão criada pelo photoshop, a mulher semi-nua na revista e no comercial de cerveja que acaba sendo vendida como regra para os demais corpos em plena exceção do ser.

Não quero que falemos sobre “sexo gordo”, quero que falemos sobre sexo, sobre as diversas formas de aproveitar desse momento delicioso, dialogando também acerca da multiplicidade de corpos e como podemos entender que cada corpo é uma fonte de prazer primeiramente interna, para si, o corpo que conversa consigo mesma e se dá prazer. E depois o corpo humano, a pessoa, a mulher gorda negra branca indígena, LGBT etc, que tem prazer com outros corpos. Que a gente se priorize; precisamos!

Arte de Delamare, participante do Desafio Arte Gorda (Delamare)

CLAUDIA: O feminismo com o qual você se identifica é o interseccional, que assume as diferenças entre mulheres negras, brancas, trans, cis, lésbicas, bissexuais, heterossexuais, etc, para lutarem juntas contra o machismo e o patriarcado. O feminismo interseccional contempla a luta contra a gordofobia?
Jéssica Hipólito: Qualquer corrente teórica ou prática feminista pode contemplar a luta contra gordofobia, basta que as pessoas falem sobre isso, considerem que isso também faz parte da violência estrutural que rege a sociedade brasileira, basta que as pessoas se importem com isso. Não é só o feminismo interseccional que tem que dar conta de tudo, todos os pensamentos feministas podem ter uma perspectiva para as diversas formas de se existir enquanto mulher nessa sociedade em que vivemos. Isso pra mim é bem simples, basta querer e fazer, mulher para dialogar sobre isso é o que não falta!

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CLAUDIA: De que maneira a opressão causada pela gordofobia se difere do racismo, do machismo e da lesbofobia?
Jéssica Hipólito: Tem reações bem específicas: quando no supermercado você é seguida por seguranças, isso é racismo. Presumir que uma pessoa negra entrou no local e só por isso significa que ela vá “roubar” é racismo. Gordofobia e machismo também atacam de forma mais incisiva a depender da situação. Mas eu às vezes me pego tentando decifrar o que foi aquele momento que passei… São atitudes tão intrínsecas às relações sociais que, se não for algo bem explícito mesmo, a gente não consegue identificar de pronto o que foi.

Eu sou negra, lésbica, gorda e pobre. Carrego marcadores múltiplos e nem sempre fica evidente pelo que estão me discriminando; às vezes é pelo todo mesmo. Por isso é importante pensar na luta de forma interseccional, compreendendo que os marcadores potencializam as opressões existentes a partir do entrecruzamento de várias delas de uma vez. Então, raça pode potencializar gordofobia, gordofobia pode potencializar machismo, ser do gênero feminino potencializa racismo, sexualidade potencializa racismo… Enfim, uma infinita combinação de violências.

Arte de Giovana Macedo, participante do Desafio Arte Gorda (Giovana Macedo)

CLAUDIA: Em quais momentos você se sente atingida pela gordofobia?
Jéssica Ipólito: Os momentos em que eu mais me sinto afetada pela gordofobia é quando vou a uma consulta médica e imediatamente me falam para emagrecer. Assim, sem mais nem meio mais, sem nenhuma pergunta da minha parte, a médica ou médico ali na minha frente já me prescreve uma indicação de nutricionista ou endocrinologista. Isso é violento. Eu não vou fazer um check-up geral pra pegar indicação de bariátrica, sabe. Nós que somos gordas somos impedidas de ter nossa saúde realmente avaliada e então direcionada a qualquer especialidade a partir de um diagnóstico. Os olhos profissionais já nos diagnosticam na hora que adentramos o consultório: GORDA. Essa é uma doença. É uma doença tão perversa que não te permite saber mais nada além do que GORDA.

Além disso, no Sistema Único de Saúde, eu fico realmente na linha bamba pra entender se estão me tratando mal por ser gorda ou por ser negra, pois o racismo institucional é presente e evidente a todo momento na vida das pessoas negras. É uma mistura de ambos. Isso quando não falo que sou lésbica, no caso, numa consulta à ginecologia. Raramente examinam a gente com devido cuidado, nem encostam. É uma expressão facial de nojo e desprezo mesmo, já notei isso.

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Ilustração de Andreia Ribeiro, participante do Desafio Arte Gorda (Andreia Ribeiro/Reprodução)

CLAUDIA: Qual é o estágio atual da luta contra a gordofobia, e quais são os próximos passos?
Jéssica Ipólito: A luta contra gordofobia não cresceu em sindicatos, organizações feministas tradicionais, numa plenária ou num seminário de universidade. É preciso atentar para os diferentes contornos que o ativismo anti-gordofobia tem dado à essa questão. Veio do meio digital essa movimentação toda que possibilitou que hoje esse tema tenha a relevância de ser exposto e tratado em outras mídias. É através da internet que as jovens têm se organizado e desenvolvido ações e debates, que por consequência adentram organizações feministas e coletivos, universidades, aulas, revistas e jornais e, sobretudo, proporciona a multiplicidade de vozes sobre a respeito dessa opressão.

Então não tem como encaixar nos moldes tradicionais um movimento que nasceu em outra época, noutra circunstância. Por isso não tem uma liderança, ninguém tem que responder a ninguém num sistema hierárquico, etc. Eu acredito que a juventude vem dando muitas indicações de como podemos proceder e aliar a tradição com inovação e tecnologia dos saberes [que não se limitam às redes sociais].

Ilustração de Cecília Silveira, participante do Desafio Arte Gorda (Cecília Silveira/Reprodução)

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